Pedocomunhão, a Igreja e o Evangelho [1/4]

Peter J. Leithart

Evandro Rosa
Basileia
7 min readJan 14, 2020

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Crianças devem receber a Ceia do Senhor? Devemos adotar a prática da pedocomunhão?

Antes de abordarmos a questão da pedocomunhão, devemos especificar tanto qual é a questão quanto que tipo de questão é. Primeiro, qual é o assunto da pedocomunhão? Não é, em essência, sobre a idade de admissão à Mesa do Senhor, pois mesmo alguns que não abraçam a pedocomunhão admitiriam a participação de crianças a partir de 1 ano e meio. Se, hipoteticamente, fossem criados alguns meios de medir o nível de “discernimento” em infantes, e as crianças que alcançassem um “6” fossem admitidas à Mesa, ainda assim essa prática não constituiria uma pedocomunhão. Tampouco trata-se de alimentar recém-nascidos com pão e vinho à força; embora algumas igrejas ofereçam os elementos a bebês recém-batizados, que eu saiba, nenhum defensor Reformado da pedocomunhão tem argumentado em favor dessa prática. A maior parte dos teólogos Reformados se contenta em esperar até que a criança seja capaz de comer alimentos sólidos antes de começar a participar da Ceia.

Especificamente, a questão prática é: “O batismo inicia os batizados à Mesa do Senhor, de forma que todos os que são batizados tenham direito a participar da refeição?” Aqueles que advogam a pedocomunhão, para além de todas as suas diferenças, responderão afirmativamente. Nada mais do que o ritual do batismo com água é necessário para que uma pessoa tenha acesso à Mesa do Senhor. Os opositores da pedocomunhão responderão negativamente. É necessário algo mais — algum nível de entendimento, algum grau de discernimento espiritual, algum tipo de experiência de conversão e alguns meios de a igreja aferir tais cumprimentos.

Segundo, e mais fundamentalmente, qual é o tipo da questão? Se for apenas sobre os requisitos de admissão para a refeição ritual da igreja, a pergunta poderá ser respondida através da aplicação direta de uma regra. Se focarmos estritamente na questão de quem participa e quando, poderíamos admitir crianças sem ajustar outras doutrinas ou práticas da igreja. Se é apenas uma questão de adicionar alguns nomes à lista de convidados, então porque a pedocomunhão recebe tamanha oposição dentro do mundo Reformado?

A pedocomunhão não se refere apenas aos requisitos de admissão considerados estritamente, mas, como o pedobatismo, está ligada a toda uma gama de questões teológicas e litúrgicas. Não trata apenas da natureza da Ceia, mas também da igreja, do batismo e, mais amplamente, do caráter da salvação que Cristo conquistou no mundo. O evangelho não está diretamente em jogo no debate da pedocomunhão. Os oponentes da pedocomunhão proclamam honesta e sinceramente o evangelho da graça, e sou grato a Deus por isso. Ainda assim, a forma eclesial e teológica que o evangelho assume correlaciona-se significativamente com os posicionamentos sobre pedocomunhão, e a coerência entre o evangelho e prática da igreja está no âmago desse debate. A aposta não é tão elevada quanto era quando Lutero protestou contra as indulgências e as inúmeras idolatrias da igreja medieval. Mas é alta, muito alta.

Correndo o risco de uma simplificação (e provocação) excessiva, apresentarei brevemente as opções sobre essas questões mais amplas em jogo:

A Ceia é uma ordenança da igreja (pedocomunhão) ou é uma ordenança para algum segmento da igreja (anti-pedocomunhão)?

A igreja é a família de Deus simpliciter (pedocomunhão) ou a igreja é dividida entre aqueles que são membros plenos da família e aqueles que são membros parciais ou visitantes (anti-pedocomunhão)?

Jesus morreu e ressuscitou para formar uma nova Israel (pedocomunhão), ou Ele morreu e ressuscitou para formar uma comunidade constituída de forma completamente diferente de Israel (anti-pedocomunhão)?

Jesus morreu e ressuscitou para formar a nova raça humana (pedocomunhão) ou morreu e ressuscitou para formar a comunhão dos espiritualmente maduros (anti-pedocomunhão)?

O batismo admite o batizado no pacto ou simboliza sua inclusão prévia (pedocomunhão), ou o batismo apenas expressa uma esperança de que um dia o batizado se torne membro do pacto de alguma outra maneira (anti-pedocomunhão)?

O pacto tem um caráter inerentemente histórico/institucional (pedocomunhão) ou é uma realidade invisível (anti-pedocomunhão)?

A graça restaura a natureza (pedocomunhão), ou a graça anula nossa natureza ou mesmo se eleva para além da natureza (anti-pedocomunhão)?

A fé requer uma crença consciente e articulável (anti-pedocomunhão) ou a fé é algo possível aos infantes (pedocomunhão)?

Como muitas questões teológicas, a pedocomunhão também levanta a questão do peso relativo das Escrituras e da tradição. A questão não é o que a tradição Reformada ensinou sobre esse assunto; reconheço que pouquíssimos teólogos Reformados advogaram a pedocomunhão. Tampouco está em questão o costume judaico, que os oponentes da pedocomunhão frequentemente citam. (Por que os cristãos deveriam se importar com o que o Talmude diz?) A questão é o que as Escrituras ensinam, e se descobrimos que nossa tradição não está de acordo com as Escrituras, devemos simplesmente obedecer a Deus e não aos homens, mesmo que estes sejam nossos honrados pais na fé.

Na continuação deste ensaio, foco nas questões eclesiológicas apresentadas pela pedocomunhão, que são, simultaneamente, questões sobre a natureza do pacto, sobre a continuidade do Antigo e do Novo, sobre a salvação e sobre o evangelho. Ao longo, sou guiado pelo pressuposto básico de que os sacramentos manifestam a natureza da igreja. Durante séculos, tanto na fé Reformada quanto em outras tradições, a teologia sacramental se concentrou estritamente no efeito dos sacramentos no indivíduo recipiente e, como resultado, tanto a teologia quanto a prática sacramental foram terrivelmente distorcidas. Devemos, também e principalmente, considerar os sacramentos em um contexto eclesial.
A questão não deve ser simplesmente o que um rito em particular opera em mim, mas também o que esse ritual afirma a respeito da comunidade que o celebra.

De acordo com o ensinamento de Paulo, a Ceia do Senhor corporifica a natureza da igreja como uma comunidade unificada. Porque participamos do único pão, somos um só corpo (1 Coríntios 10:16,17), e uma vez que a participação do pão e do cálice é uma comunhão em Cristo, essa comunhão nos compromete a rejeitar a comunhão com os demônios e os ídolos. A Ceia do Senhor declara ritualmente que a igreja é una e que essa comunidade unida está separada do mundo. É por isso que, de acordo com o Apóstolo Paulo, os Coríntios não estavam realmente celebrando a Ceia do Senhor (1 Coríntios 11:20).

Da perspectiva de Paulo, a Ceia e sua prática fornecem um critério para medir e julgar a fidelidade da igreja ao seu chamado e seu Senhor, e, em contrapartida, o ensino do Novo Testamento sobre a igreja fornece um critério para avaliar nossa vida sacramental. A Ceia é uma expressão ritual de nossa confissão de que a igreja é Una, Santa, Católica e Apostólica. Devemos questionar: “A vida da igreja corresponde ao que afirmamos sobre nós mesmos à Mesa?”, mas também: “Aquilo que confessamos sobre a igreja tem se manifestado à Mesa?”

O raciocínio sacramental de Paulo pode ser estendido em várias direções. Sabemos, por exemplo, que a igreja é um corpo no qual divisões entre judeus e gentios, escravos e livres, homens e mulheres foram dissolvidas (Gálatas 3:28), e Paulo repreendeu severamente a Pedro quando sua comunhão à Mesa falhou em se alinhar com essa realidade eclesial (Gálatas 2: 11–21). Uma igreja que nega o pão e o vinho a negros, ou brancos ou asiáticos, está mentindo sobre a igreja e a Ceia. Mais precisamente, Paulo diz que a igreja é uma comunidade onde os mais fracos e mais indecorosos são bem-vindos (1 Coríntios 12: 22–26). Será que a recusa Batista em batizar crianças expressa ritualmente esse tipo de igreja, ou implica que a igreja recebe apenas os inteligentes e fortes?

Ao mesmo tempo, os sacramentos devem expressar o que a igreja proclama no evangelho. Isso pode ser abordado a partir de várias perspectivas. O fato de Jesus derrubar o muro divisor entre judeus e gentios faz parte do evangelho, e assim a Ceia expressa o evangelho quando recebe Cristãos de todas as tribos, línguas e nações. O evangelho anuncia que Deus iniciou uma nova criação em e através de Jesus, e nossas práticas e teologia Eucarísticas devem expressar o escopo desse anúncio. O evangelho é sobre a graça de Deus para pecadores que não têm capacidade sequer de rastejar de volta para Ele, e a forma como pensamos e celebramos a Ceia deve ser consistente com isso. Segundo Lutero, a Ceia é o evangelho, pois nela nosso Pai celestial nos oferece Seu Filho através do Espírito por nossas vidas; a Ceia é o primeiro e último presente de Deus, Deus presenteando a Si ao Seu povo. Mas dizê-lo e praticar em nossa Mesa de comunhão são duas coisas completamente diferentes.

Em suma, a Ceia e sua prática fornecem um critério para medir e julgar a fidelidade da igreja ao evangelho e, em contrapartida, o ensino do Novo Testamento a respeito do evangelho fornece um critério para avaliar nossa vida sacramental. Frequentemente, Jesus descrevia Sua pregação como um convite para uma festa, um banquete que Ele mesmo celebrou com cobradores de impostos e pecadores em todo o Seu ministério e continua a celebrar com pecadores na Eucaristia. O evangelho, portanto, fornece um critério para julgar nossas regras de admissão para a Mesa: o convite para a Mesa é tão amplo quanto o convite para se arrepender e crer?

Devemos pensar sobre o batismo e a Ceia nesses contextos eclesiais e evangélicos (sobrepostos, se não idênticos), se queremos entender o que está em jogo no debate sobre a pedocomunhão. A questão não é apenas quem está dentro e quem está fora, mas o que nossas decisões sobre quem está dentro e quem está fora afirmam sobre a igreja que somos e o evangelho que proclamamos. Que tipo de comunidade reivindicamos ser se convidamos crianças para a Mesa do Senhor, ou, como é mais comum, o que estamos dizendo sobre a igreja quando as excluímos? O que nossas declarações rituais sobre a igreja dizem sobre a relação da igreja com Israel e o caráter da salvação? Coloquemos nossas teologias e nossos sermões de lado por um momento: Que evangelho nossa refeição prega?

Original: Paedocommunion, the Gospel & the Church I
Tradução: Ernesto Ochikubo/Evandro Rosa

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