Pedocomunhão, a Igreja e o Evangelho [2/4]

Peter J. Leithart

Evandro Rosa
Basileia
5 min readJan 15, 2020

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Todos os pedobatistas concordam que a igreja é a nova Israel, formada como o corpo do Cristo Ressuscitado. Mas a pedocomunhão reforça esse ponto dramaticamente, pois insiste que os requisitos de admissão para a refeição da igreja são exatamente os mesmos requisitos de admissão para as refeições de Israel.

A antiga Israel celebrava muitas refeições diferentes com várias regras de admissão. Algumas comidas, classificadas como “santíssimas”, eram reservadas exclusivamente aos sacerdotes (Lev. 24:5–9), e a “comida sagrada” só podia ser consumida pelos membros de uma família sacerdotal (Levítico 22:10–16). Crianças e adultos leigos eram excluídos dessas refeições sacerdotais. Uma vez que a distinção entre o sacerdócio de Aarão e o sacerdócio de Israel como um todo foi sobrepujada pelo Novo Pacto, tais regulamentos não são mais diretamente relevantes para a questão da admissão na Ceia do Senhor.

O que é digno de nota é que todos os israelitas eram autorizados a comer em todas as festas do calendário litúrgico de Israel. Em todos os casos, adultos e crianças eram autorizados a participar da refeição. Homens adultos eram obrigados a participar (Êxodo 23:17), mas mulheres e crianças eram autorizadas a participar. As crianças explicitamente participavam das festas de Pentecostes e dos Tabernáculos (Deuteronômio 16:10–14). O santuário central foi construído justamente para esse fim; para que israelitas, pais e filhos, pudessem celebrar diante de Javé: “e vos alegrareis perante o Senhor, vosso Deus, vós, os vossos filhos, as vossas filhas, os vossos servos, as vossas servas e o levita que mora dentro das vossas cidades e que não tem porção nem herança convosco” (Deuteronômio 12:12). Seria absurdo se as crianças fossem excluídas das festas do santuário central. Era justamente para isso que ele servia.

Embora a inclusão de crianças na Páscoa nunca seja explicitamente estabelecida, há um argumento convincente — e diria, conclusivo — para a pedo-Páscoa. Êxodo 12:3–4 especifica o tamanho do cordeiro necessário para a refeição: “Falai a toda a congregação de Israel, dizendo: Aos dez deste mês, cada um tomará para si um cordeiro, segundo a casa dos pais, um cordeiro para cada família. Mas, se a família for pequena para um cordeiro, então, convidará ele o seu vizinho mais próximo, conforme o número das almas; conforme o que cada um puder comer, por aí calculareis quantos bastem para o cordeiro.”

A regulação deixa claro que o cordeiro pascal deveria ser, ao menos, grande o suficiente para alimentar uma casa; mas o que é uma “casa”? Em todo o Pentateuco, “casa” incluía filhos e servos. A “casa” de Noé obviamente incluía seus filhos e nora (Gênesis 7:1), e Abrão circuncidou seus servos como homens de sua “casa” (Gên. 17:23, 27). O primeiro versículo de Êxodo nos diz que os filhos de Jacó vieram ao Egito, cada um com sua “casa” (1:1). Em nenhum lugar da Bíblia uma “casa” exclui crianças. Se o cordeiro deveria ser grande o suficiente para uma casa, deveria ser grande o suficiente para dar uma porção as crianças da casa. Se os membros mais jovens da casa não comeriam, por que o cordeiro era grande o suficiente para alimentá-los? Para provocá-los?

Muitos tem sugerido que o “catecismo” em Êxodo 12:25–28 mostra que as crianças deveriam ser capazes de responder a perguntas antes de participar da refeição. Essa é uma interpretação questionável da passagem, mas, mais importante, Êxodo 12 inclui instruções explícitas sobre a admissão à Páscoa. O capítulo termina com a “ordenança” da Páscoa, a saber, que “nenhum filho de estrangeiro comerá dela” e que “nenhum incircunciso comerá dela” (Êxodo 12:43–48). A circuncisão é estabelecida como o portão de acesso para a Páscoa. Por outro lado, aqueles que foram excluídos da Páscoa estavam ipso facto sendo tratados como “estranhos”. Os filhos de Israel eram “estranhos” ao povo do pacto?

A discussão de Paulo sobre a Ceia em 1 Coríntios 11:17–34 não compromete essa continuidade. Advertências quanto aos perigos da participação hipócrita nas festas de Israel são comuns nos profetas (Is 1:10–17; Jr 6:20; Am 5:21–24), e ainda assim sabemos que as crianças participaram dessas festas. Um israelita poderia celebrar a Festa dos Tabernáculos em estado de impureza? Não. No entanto, as crianças eram convidadas a participar dessa refeição. Se pedocomunhão está correta, as crianças da igreja estão participando de uma refeição perigosa; mas o fato é que os filhos dos filhos de Israel sempre participaram de refeições perigosas.

Os opositores à pedocomunhão por vezes apontam para a exigência de purificação ritual para a participação na Páscoa (Núm. 9), e aplicam isso à Ceia dizendo que os participantes devem estar em um estado de purificação espiritual. Mas essas regras não comprometem a pedocomunhão. Sob a lei, crianças pequenas raramente se tornavam impuras (cf. Levítico 12–15). Jovens meninas não poderiam ser consideradas impuras por causa de menstruação ou de parto, nem a maioria dos meninos de cinco anos tivera uma emissão seminal ou sofreu de alguma DST. Elas poderiam ir a funerais e ser rapidamente purificadas. As crianças podem amar bacon e presunto, mas se crescessem na antiga Israel, nunca teriam sido servidas dessas ou outras carnes impuras. Sugerir que as crianças foram excluídas da Páscoa por causa da possibilidade de impureza não faz o menor sentido.

No que diz respeito à aplicação desses regulamentos no Novo Pacto, isso levanta a questão de como devemos considerar nossos filhos batizados. E nesse sentido, podemos observar que o mesmo Paulo que advertiu contra a participação indigna na Ceia, afirmou na mesma carta que os filhos dos crentes são “santos” (1 Coríntios 7:14). Ousamos chamar de impuro o que Deus purificou?

Há uma diferença entre os requisitos de admissão a algum privilégio e os requisitos para o uso apropriado desse privilégio. A Constituição dos EUA não exige que os candidatos ao Senado sejam inteligentes, honestos, abnegados ou justos. Óbvio, se ele será um bom senador, o candidato deverá ser tudo isso e muito mais. Mas ele é qualificado para candidatura ao atingir pelo menos seu 35º aniversário, sendo cidadão dos Estados Unidos e residindo no estado em que é candidato. Da mesma forma, quando Paulo exorta os Coríntios sobre a participação apropriada na Ceia, ele não está dando requisitos de admissão.

Crianças israelitas participavam de todas as refeições que seus pais participavam. Como a igreja é a nova Israel, os requisitos de entrada para a Páscoa da igreja são os mesmos de Israel. A descontinuidade em relação à admissão à Mesa, como a descontinuidade entre os temas da circuncisão e do batismo, prejudica a identificação da igreja e de Israel. O que estamos dizendo sobre a igreja quando excluímos crianças da Mesa? Estamos dizendo que não somos Israel.

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