Pilatos, Coroador do Rei

Thais Cavalar
Basileia
Published in
7 min readApr 10, 2020

Peter J. Leithart

Ecce Homo — Tiziano Vecellio

De Deus não se zomba, diz Paulo. Zomba-se de Deus, diz Matheus. Quem está correto? Ambos estão em perfeita harmonia, mas para ver isso, precisamos ler a passagem novamente. Nós veremos que, em cada ponto, a zombaria volta-se ao zombador. Em cada ponto, a zombaria é virada ao avesso; a injustiça se torna o caminho para restauração e redenção, e a zombaria a estrada para a verdade.

Começa pelos soldados. Eles zombam de Jesus, e zombando dEle, zombam dos Judeus. Mas a zombaria deles revela a verdade, de todas as formas. Se eles tivessem algum discernimento, os soldados romanos poderiam ter visto a ironia da situação por eles mesmos. Durante o julgamento, Pilatos cedeu autoridade ao povo Judeu. A decisão por crucificação foi deles, não dos romanos, e os soldados estavam agindo sob ordens dos Judeus. Pilatos tem o título de “governador”, mas não exerce muito seu papel aqui. Quem está realmente no comando são os Judeus. Então quando os soldados dizem que Jesus é o Rei dos Judeus, eles estão dizendo que Ele é rei de si mesmos também: eles cumprem Suas ordens.

A túnica escarlate é o vestuário do soldado romano, mas escarlate também é a cor das cortinas do tabernáculo, e da túnica similar do Sumo Sacerdote. Ao cobrir Jesus em escarlate, eles O estão vestindo para o serviço sacerdotal, e o sacerdote também usa uma coroa. No dia do expiação, o Sumo Sacerdote despia-se de suas vestes, colocava vestes de linho para os rituais da expiação, e então colocava novamente suas vestes comuns. Em despir-se e vestir-se, e despir-se e vestir-se novamente, os soldados romanos estão enviando Jesus para aspergir Seu próprio sangue para cobrir os pecados, de uma vez por todas. Na morte do Sumo Sacerdote, sua túnica era removida e colocada em seu filho, o novo Sumo Sacerdote. Assim também um sacerdócio está morrendo aqui, o sacerdócio de Arão e Zadoque, e está sendo substituído por um novo sacerdote, o sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque. Escarlate é também a cor das vestes da meretriz no Apocalipse. Ao vestir Jesus em escarlate, os soldados estão inconscientemente confessando que Jesus é aquele que tira o pecado das meretrizes, aquele que declara “embora sejam rubros como púrpura, como a lã se tornarão; embora os seus pecados sejam vermelhos como escarlate, eles se tornarão brancos como a neve”.

A história de José foi uma história de vestimenta, de vestir e despir. Seu pai o deu uma túnica de muitas cores como um sinal de sua preeminência entre seus irmãos, mas seus irmãos o despiram de sua túnica e o enviaram nu ao Egito. Potifar o deu outra túnica, mas a esposa de Potifar a arrancou dele. Finalmente, o Faraó cobriu José com toda a autoridade do Egito, e por essa posição ele salvou seus irmãos que o traíram e deu alimento ao mundo. De forma inconsciente, os soldados romanos preparam Jesus para ser um novo José, que irá à frente de Seu povo para preparar um lugar para eles, que irá se erguer para receber toda autoridade e para distribuir o pão.

Na cruz, também, os soldados romanos e os Judeus não deixam de cumprir as promessas de Deus. A cena é como o elenco de uma peça: eles estão atribuindo papéis a todos nesse grande teatro. E, apesar de si mesmos, tudo que todos fazem declara Jesus como Rei dos Judeus ou como o templo de Deus.

Os soldados romanos involuntariamente cumprem a promessa. Mateus torna isso explícito no verso 35. Mas é pervasivo. Quando eles dão fel a Jesus, estão cumprindo o Salmos 69:21. Algozes romanos sempre tinham permissão para tomar as vestes de um criminoso, mas ao lançarem sortes, eles cumpriram o Salmos 22:16. E se os soldados romanos estão no lugar daqueles que perseguiam o salmista, então Jesus está no lugar do salmista, ou seja, no lugar de Davi, o Rei de Israel, Rei dos Judeus. Como Isaías predisse, Jesus é crucificado entre os transgressores (v. 38; cf. Is. 53:12; cf. Mt. 20:21–23). Eles não estão apenas cumprindo a profecia, o ponto de Mateus não é apenas apologético. A ironia é mais profunda. Quando eles cumprem a promessa, eles enfraquecem sua zombaria. Tudo que os soldados fazem prova que Jesus é quem Ele disse que é.

Os transeuntes também cumprem a profecia, e por sua zombaria não apenas assumem papéis, mas também atribuem uma posição a Jesus. O verso 43 é uma citação do Salmo 22:8. No Salmo original, essas palavras vêm de pessoas zombando de Davi. O principal sacerdote e os escribas se posicionam como inimigos do ungido do Senhor. Suas ações e palavras mostram que Jesus é, sem dúvida, “Rei de israel”, Filho de Davi (v. 42). “Se tu és o Filho de Deus” — onde vimos isso antes? Isso nos leva de volta à cena da tentação (Mt. 4:3, 6). Essas são zombarias e acusações satânicas. O principal sacerdote, escribas e anciãos juntam-se em escárnio satânico (v. 41). Ao descrever as pessoas “sacudindo suas cabeças”, Mateus mostra que essa cena é o cumprimento do Salmos 22. “Mas eu sou verme, e não homem”, o Salmo diz, “opróbrio dos homens e desprezado do povo. Todos os que me veem zombam de mim, estendem os lábios e meneiam a cabeça”. (Sl. 22:7). Outra vez, suas ações os colocam no papel de inimigos do ungido do Senhor.

Entretanto, as outras referências bíblicas a “manejar” ou “sacudir” a cabeça estão também no contexto. Quando Jerusalém encontra-se em ruínas, Jeremias diz: “todos os que passam pelo caminho batem palmas, assobiam e meneiam a cabeça sobre a filha de Jerusalém, dizendo: É esta a cidade que denominavam perfeita em formosura, gozo de toda a terra?” (Lm. 2:15). Mais cedo, Jeremias havia alertado que a resistência a Nabucodonosor seria desastrosa, já que Yahweh estava determinado em tornar Jerusalém e o templo e a terra “um espanto e uma irrisão perpétua; todo aquele que passar por ela se espantará e meneará a cabeça” (Jr. 18:16).

Os transeuntes zombam de Jesus por dizer que Ele poderia destruir o templo e reconstruí-lo, mas assim fazem a parte daqueles que passaram pelo templo de Salomão em ruínas e sacudiram suas cabeças em tristeza, ou zombaria, pela desolação da cidade que um dia foi grande. Não havia nEle beleza que os agradasse. Os transeuntes e os líderes Judeus zombam de Jesus porque ele afirmou que seria capaz de destruir e construir o templo em três dias, mas as suas ações deixam claro que isso é precisamente o que está acontecendo. Eles zombam das profecias de Jesus ao mesmo tempo em que as cumprem. Eles zombam das afirmações de Jesus a respeito do templo mas, sem perceberem, tratam-nO como o templo.

Eles zombam de Jesus como se ele fosse um templo impotente, em ruínas. Eles deveriam saber melhor. Quando Salomão construiu o templo, ele orou para que Yahweh ouvisse as orações dirigidas àquele lugar. Mesmo quando Israel estivesse no exílio, Salomão tinha esperança de que Yahweh escutasse as orações do povo dirigidas ao templo (1 Rs 8). Israel, no fim das contas, foi para o exílio, e deixou para trás as ruínas empoeiradas do templo de Salomão, e por setenta anos orou em direção ao templo, às ruinas do templo, com esperança de que Yahweh os ouviria e restauraria. O templo não salvou a si mesmo, mas aquele templo em ruína os salvou. Eles se viraram para o templo, oraram por restauração, e foram restaurados. Na cruz, Jesus é um templo em ruínas, as ruínas em direção às quais dirigimos nossas orações.

Em todos esses detalhes, está a zombaria e tortura e um tribunal desonesto e um julgamento injusto e uma execução brutal de um homem inocente — isso não prova que Jesus é mentiroso. Tudo isso é o que faz de Jesus um rei.

Você é um rei? — Pilatos pergunta. “Tu o disseste”, responde Jesus. O que significa: “Depende de você. Você pode me fazer um rei, Jesus diz, e Pilatos faz, entregando-o para a zombaria dos soldados, a zombaria dos transeuntes, a zombaria dos líderes Judeus, a zombaria dos ladrões. As ações de Pilatos, e a rejeição e a zombaria dos líderes Judeus, colocam Jesus precisamente na posição de Davi e na posição do Servo Sofredor de Isaías. A zombaria não é uma prova contra a majestade de Jesus, mas o oposto, é o cumprimento das Escrituras que nos mostram o rei Davídico precisamente nessa posição, desprezado pelo povo, rejeitado e escarnecido, confiando apenas em Deus para sua justificação!

As multidões, os líderes Judeus e os ladrões todos se unem à tentação Satânica. Jesus é um Adão na árvore, mas uma árvore que se tornou um meio de execução e lugar de uma fonte de frutos. E a tentação de Cristo é a mesma tentação do primeiro Adão: Disse Deus? Disse Deus que Ele o resgataria? Onde está Ele? E se o seu Pai prometeu um resgate e não vier, pode-se confiar em Deus? Ele o enviou para uma morte excruciante; Ele o enviou para uma multidão de zombadores. Que tipo de Pai é esse? Pode-se confiar num Pai que o levaria para cá? Pode-se confiar num Pai que o levaria para cá e o deixaria sozinho?

Jesus permanece na cruz porque Ele confia que essa cruz é prova da Sua filiação, prova da Sua majestade. E assim devemos confiar. Quando sofremos, somos tentados a duvidar da palavra do Pai, tentados a duvidar da bondade do Pai. Quando o Pai nos coloca numa cruz, queremos descer para baixo o mais rápido possível. Mas não é aí que pertencemos. A cruz, com toda a sua dor, vergonha, humilhação e zombaria, é onde pertencemos, porque é onde Jesus está, é onde nosso Rei está pendurado, coroado em Seu sofrimento.

Texto original: Pilate the Kingmaker
Tradução e revisão: Thais e Bruno Pasqualotto Cavalar

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