Um conto de três servos

Felipe Felix
Basileia
Published in
7 min readJul 30, 2018

por Peter J. Leithart

Good King Wenceslas

Era uma vez três jovens que serviam um grande Rei. Sob a recomendação do Príncipe, cada um foi trazido ao palácio, participaram de um ritual de lavagem, foram vestidos com as vestes de um escudeiro, e foram colocados à serviço do Rei.

O Rei os aceitou calorosamente e os tratou como se fossem seus próprios filhos. Quando ele se encontrava com eles, ele contava as histórias do Reino e, através de tutores autorizados, ensinava a eles os modos da corte. Enquanto ele falava, eles não apenas aprendiam como se comportar como cortesãos, mas também, cada vez mais, amavam e confiavam no sábio Rei. Frequentemente, eles serviam as mesas nas festas reais, mas, ocasionalmente, o Rei os convidava a sentar e a desfrutar da festa. A vida na corte era abundante em alegria e paz.

Conforme os três jovens cresciam em habilidade, eles acompanhavam o Rei em campanhas militares e missões diplomáticas. Cada um lutava bravamente, e por suas proezas e liderança, o Rei começou a reinar sobre um território cada vez maior. Um dos jovens se tornou um arauto. O Rei o enviava em missões diplomáticas e lhe confiou a negociar com os governantes dos reinos ao redor. Os três se tornaram muito famosos no reino.

Mas os três não pensavam a mesma coisa sobre o Rei e sobre o privilégio de estar em seu serviço. O primeiro servo era, na verdade, um espião de um reino vizinho. Ele entrou no serviço do Rei para perturbar sua corte e minar seus planos de conquista. Ele ouvia o Rei e, para manter o disfarce, sujeitou sua conduta aos desejos do Rei. Interiormente, se irritava quando o Rei falava. Ao invés de crescer em amor e devoção ao Rei, ele achava as palavras e os hábitos do Rei, cada vez mais, irritantes. Por alguns anos, o Rei suspeitou dele, e era cauteloso ao enviá-lo em missões reais. Ainda assim, o Rei continuou a mostrar bondade e a tratá-lo com tamanha cordialidade que nenhum observador poderia ter adivinhado da suspeita do Rei. Eventualmente, o servo foi encontrado esgueirando-se do palácio pela noite para enviar um relatório ao seu verdadeiro senhor. Entristecido e irado, o Rei ordenou que ele fosse preso e depois assinou uma ordem de execução.

O segundo servo tinha vindo de uma família pobre e insignificante, e estava encantado por ser um membro da corte. Ele aprendeu tudo o que podia sobre a vida na corte e sobre batalha e esperava ansiosamente para participar da mesa com o Rei. Ele confiava e amava o Rei, e esse amor e confiança pareciam se aprofundar cada mês que passava.

Não durou. O servo começou a se revoltar contra o Rei quando acompanhou o primeiro, o servo traidor, numa missão diplomática. Enquanto viajavam, o primeiro servo falava sobre as conquistas do Rei. Primeiro ele apenas levantava perguntas, mas logo, passava a fazer fortes afirmações sobre a crueldade do Rei. O segundo servo defendeu a justiça do Rei, mas através de uma combinação de mentiras, de omissões inteligentemente escolhidas, e de insinuações enganosas, o servo traidor conseguiu abalar a confiança de seu amigo.

Conforme as suspeitas cresciam no segundo servo, as palavras do Rei não soavam mais inocentes ou sábias como antes, e o servo começou a questionar o que o Rei realmente queria quando convidou os servos para jantar com ele. Ele pensou em conversar com o Rei sobre as queixas do primeiro servo, mas quando o primeiro servo foi preso, parece que toda a suspeita se provou verdadeira e ele ficou com medo de se revelar. Uma noite, ele escapou do palácio e fugiu para uma corte vizinha, onde serviu pelo resto da sua vida.

O terceiro servo era, à primeira vista, o menos promissor dos três. Ele não tinha falta de inteligência ou habilidade, mas havia nele um vestígio beligerante que o levava a uma contenda contínua com os outros cortesãos, e frequentemente com o próprio Rei. Inicialmente, ele estava suspeito do favor do Rei, questionava os conselhos do Rei, e comia pouco quando sentava, com um olhar severo, na mesa do Rei.

Ainda assim, quando ele falhava em alguma missão, ou era pego em alguma briga, ou insultava o Rei, o Rei mostrava uma paciência sobre-humana. Ele o perdoava completamente e continuava a ensinar e a falar com ele. Durante o segundo ano do seu serviço, o coração do servo começou a se derreter e ele começou a se deleitar na presença do Rei, em suas palavras e na sua mesa. Ele aprendeu a mostrar a mesma paciência e bondade para com seus colegas cortesãos que o Rei o havia mostrado. Ele serviu o Rei fielmente por muitas décadas, tornou-se um grande homem na corte, e lutou e venceu muitas batalhas para o Rei, incluindo uma contra o exército liderado pelo segundo servo que havia deixado a corte. Quando ele se tornou um homem velho, ele ensinava os jovens cortesãos os modos da corte. Ele tinha um dom especial de disciplinar os insubmissos. Quando ele morreu, em idade avançada, ele recebeu um funeral exuberante e fez muita falta para a corte.

Logo antes de morrer, o terceiro servo estava deitado em sua cama. O sol da primavera brilhava através da grande janela do seu quarto no palácio. Seu neto, agora também um escudeiro, do eterno Rei, estava sentado ao seu lado. Sua mente vagava, como as mentes dos velhos fazem, para sua mocidade, e para os dois outros servos que haviam começado o serviço com ele.

“Mas o primeiro servo nunca foi um servo do Rei,” disse seu neto.

“Sim, isso é verdade. Ele era um traidor desde o começo,” o velho homem respondeu. “Mesmo assim, logo que ele vestiu o traje que você veste agora, ele era um servo do Rei. Apesar de si mesmo, ele até fez ao Rei um bom serviço.”

“Mas ele não conhecia de verdade o Rei”.

“Não como ele deveria ter conhecido, certamente. Mas o Rei compartilhava tão ricamente com ele como compartilhava com o resto de nós. Ele sentava na mesa do Rei, aprendia do Rei, vestia as vestes do Rei, carregava as bandeiras do Rei. Ele vivia tão abundantemente quanto todos nós. Em todo tempo havia traição em seu coração. Mas eu tenho certeza que houve momentos quando seu coração se inclinava ao Rei e ele reconhecia sua traição como o mal, que realmente era. Eu me lembro de momentos quando havia um brilho de lágrima em seus olhos, e momentos quando ele ria, alegremente e sinceramente, das histórias do Rei. Ele teria de ser desumanamente duro para não se derreter ao menos um pouco diante do calor do Rei.”

“E o segundo servo era igual o primeiro. Também virou um traidor.”

“Não, não, não. A história dele é bem diferente. O fim é o mesmo, certamente, mas o caminho até o fim é outra história. Veja, ele amava o Rei e confiava nele. Ele amava mais o Rei do que eu.”

“No começo…”

“Sim, no começo. Se o Rei julgasse durante o primeiro ano, eu tenho certeza de que teria sido expulso do palácio e o segundo servo teria recebido honras sobre todos os outros. Ainda bem que o Rei não julga tão rapidamente. Eu era um grande aborrecimento. Eu ainda sinto tristeza só de lembrar, apesar que o Rei parece ter esquecido disso completamente.”

“Mas como que esse servo mudou tão completamente? Certamente que ele não conhecia nenhum pouco do espírito do Rei.”

O velho homem sorriu. “Você é muito jovem. Para um jovem, tudo parece muito óbvio, muito claro e simples. Mas isso não foi claro e simples. O segundo servo conhecia o espírito do Rei. Ele experimentou o espírito do Rei, e este espírito o inspirou a fazer grandes coisas, grandes coisas para o Rei. Mas então ele esqueceu. Ele suprimiu o espírito do Rei. Alguma coisa aconteceu no profundo da sua alma, e de alguma forma ele esqueceu toda a bondade, todo o riso, todas as palavras, todas as festas. Ele começou a suspeitar da bondade do Rei. Ele começou a achar que o Rei estava fazendo armadilhas para ele, e então ele pensou em fazer uma armadilha para o Rei.”

A tarde clara se aprofundou em carmesim. Nem o velho homem nem seu neto falaram por muitos instantes. Os sons da tarde invadiram o quarto pela janela numa brisa suave.

“Como eles puderam fazer isso?”, enfim, o jovem perguntou. “Eles tinham tudo que poderiam imaginar, uma vida abundante à serviço do Rei. O que eles estavam procurando?”

Respirando com pesar, o avô respondeu, “Eu não sei. É um grande mistério. Mas ainda assim, aconteceu.”

O neto estremeceu. “Isso é muito amedrontador,” sussurrou.

“O quê?”

“É amedrontador pensar que alguém que recebeu tanto, alguém que era tão fiel, pudesse se revoltar completamente. Eu estou com medo de que eu possa fazer o mesmo.”

O velho homem se estendeu e tocou a mão de seu neto. “Não tenha medo. O Rei irá guardá-lo. Permaneça próximo dele. Confie no que ele diz. Não suspeite dele. Aproveite as festas dele. Passe tempo com os outros servos e com os anciãos. Você veste as roupas de um servo real, e isto é um sinal do seu favor. Tenha fé no Rei, e tudo ficará bem.”

E assim foi.

Texto original: A Tale Of Three Servants em The Baptized Body

Tradução: Felipe Felix

Revisão: Leonardo Daneu Lopes

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