Uma Reflexão da Etiópia

por Sam Bussey

Bruno Pasqualotto Cavalar
Basileia
6 min readFeb 12, 2018

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Gali Tibbon/AFP

Nós precisamos das perspectivas uns dos outros para corrigir, ensinar e treinar as nossas próprias perspectivas.

A maioria dos Cristãos evangélicos do Ocidente raramente, ou nunca, jejuam como forma de disciplina espiritual. Na nossa cultura, o jejum está mais conectado à dieta do que ao culto, o outro lado da nossa fascinação profundamente ambígua com comida. A comida está em todo lugar. Comemos mais do que jamais comemos antes, numa velocidade cada vez maior, e gastamos cada vez mais dinheiro nela. Ainda assim, também gastamos bilhões para lidar com os problemas do consumo exagerado. Apesar disso, embora a dieta seja comum na nossa cultura, o jejum como ato de culto é um conceito estranho.

Quando os Cristãos do Ocidente refletem sobre a prática da Quaresma, e da liturgia em geral, há várias perguntas importantes que fazemos: é algo que está ensinado nas escrituras, é algo que a Igreja tem feito tradicionalmente, e (para os discípulos de Hooker por aí) é algo razoável? Como resultado, nossa reflexões são significativamente moldadas pela nossa atenção ao tempo. Nós exploramos os horizontes culturais do primeiro século, os vários horizontes da história da igreja, e como eles se relacionam com a nossa própria cultura no século 21. Consequentemente, nós tendemos a olhar para o passado — o nosso passado. O perigo dessa abordagem é que não damos suficiente atenção ao espaço. Nós muitas vezes ignoramos os muitos e variados horizontes culturais da igreja no presente, sem mencionar a rica herança a ser encontrada em algumas dessas tradições.

Como nos mostra Andrew Walls (The Cross-Cultural Process in Christian History), a Escritura nos ensina que a Igreja tem tanto uma dimensão temporal como uma espacial. A epístola aos Hebreus destaca a natureza multi-generacional da Igreja. Os heróis da fé do Velho Testamento “não obtiveram, contudo, a concretização da promessa, por haver Deus provido coisa superior a nosso respeito, para que eles, sem nós, não fossem aperfeiçoados.” (Heb 11:39–40).

O livro dos Efésios, tratando do crescimento notável do Cristianismo entre os Gentios no antigo Mediterrâneo, enfatiza a natureza multi-cultural da Igreja. A metáfora da construção de um templo em Efésios 2 e a bela expressão trinitária que a acompanha implica na construção de uma unidade da diversidade humana em Cristo, a casa de Deus, através da obra do Espírito Santo. Em Efésios 4, a metáfora muda drasticamente para a edificação de um corpo, que deve crescer “até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef. 4:13). A inteira comunhão da fé, espalhada por todo o tempo e espaço — terrível como um exército com bandeiras — é parte de uma única história à espera de sua consumação em Cristo.

Se a igreja tem tanto uma dimensão temporal como espacial, nós não podemos olhar apenas para a nossa própria herança. Se verdadeiramente desejamos crescer no nosso conhecimento de Cristo e na unidade da fé, nós precisamos nos engajar com Cristãos de outras culturas, tanto local como globalmente. O crescimento incrível do Cristianismo no sul global é uma rica benção para a igreja no século 21. Nós precisamos das perspectivas uns dos outros para corrigir, ensinar e treinar as nossas próprias perspectivas.

No passado houve gigantescos obstáculos para um engajamento Cristão intercultural, primariamente as vastas amplidões de terra e mar. Hoje o mundo é menor, mas um número de barreiras permanecem. Diferenças culturais e linguísticas continuam apesar da globalização. Infelizmente, divisões étnicas ainda são profundas. Embora povos de diferentes partes do globo estão mais conectadas do que nunca, o mundo parece ser ainda mais tribal do que menos.

Apesar desses obstáculos, ainda existem muitas maneiras pelas quais os Cristãos podem engajar com seus irmãos e irmãs ao redor do globo. A internet é um grande recurso para informações sobre Cristãos de outros países. Hoje em dia, por exemplo, você não precisa ir para uma biblioteca universitária para aprender sobre a Igreja Ortodoxa Etíope Tewahedo — eles tem um site oficial.

Cristãos Etíopes tem uma herança muita rica no que se refere à prática Quaresmal. O Cristianismo Etíope tem raízes muito antigas. O registro mais antigo de um convertido Etíope, é claro, está na história de Filipe e o eunuco Etíope de Atos 8. Não temos como saber o que aconteceu com ele ou como seu povo recebeu as boas novas que ele trouxe de volta da sua peregrinação, mas uma semente foi plantada e começou a crescer.

No começo dos anos 300s, um novo capítulo começou quando Frumentius e seu irmão Aedesius, dois jovem Cristãos Sírios, naufragaram na costa da Eritreia. Sua obra levou à conversão de Ezana, o rei de Aksum, e à introdução do Cristianismo como a religião estatal. A partir daí, excluindo um breve e trágico interlúdio Católico Romano, o Cristianismo Ortodoxo Etíope continuou a desenvolver liturgias distintivas que ainda continuam.

O ensino tradicional da Igreja Ortodoxa Etíope Tewahedo sobre o jejum pode ser encontrado na Fetha Nagast, um código legal que foi introduzido no século quinze, e foi bastante influente na sociedade e na cultura Etíope:

“O jejum é uma abstinência da comida, e é observado pelo homem em certos momentos determinados pela lei, para obter perdão de pecados e muita recompensa, obedecendo assim àquele que fixou a lei. O jejum também serve para enfraquecer as forças da concupiscência para que o corpo possa obedecer a alma racional. Todos os fiéis são compelidos a observar o jejum de quarenta dias como o fez Cristo — que Ele seja louvado! — o jejum que chega ao fim na Sexta do Peixe, e após isso o jejum da semana da crucificação. Esses jejuns devem ser observados até o fim do dia, e durante esse tempo nenhum animal com sangue ou nada que seja produzido por animais será comido. E também os jejuns de Quarta e Sexta de toda semana se observará, exceto durante os cinquenta dias, e durante as festas do Natal e do batismo, quando essas festas caírem nesses dias. Nos dias de jejum se jejuará até à nona hora, como está escrito.” — Fetha Nagast, Capítulo 15

De acordo com o site da Igreja Ortodoxa Etíope, há sete períodos oficiais de jejum, o que dá um total de quase 250 dias de jejum no ano. Apesar disso, dois desses jejuns — o jejum dos apóstolos e o jejum dos profetas — são apenas para o clero, o que dá um total de 180 dias de jejum para os Cristãos dedicados.

Então, o que podemos aprender dos Cristãos Etíopes sobre a prática da Quaresma? Aqui estão três breves sugestões. Primeiro, jejum é uma abstinência de comida, especialmente de carne e produtos animais. Isso pode parecer óbvio, mas nós Cristãos ocidentais temos uma tendência de espiritualizar o jejum. Nós não abrimos mão do nosso pão diário; nós abrimos mão de alguns agrados como chocolate, café, Facebook, jogos ou notícias. Embora “jejum” dessas coisas possa ser beneficiário, podemos deixar escapar os benefícios espirituais de abster da comida.

Segundo, o jejum tem uma dimensão comunal. O foco Ocidental no indivíduo muitas vezes obscurece essa dimensão. Nós podemos começar a Quaresma juntos na Quarta-feira de Cinzas, mas nós jejuamos solitariamente ou em pares, e raramente terminamos a Quaresma quebrando o nosso jejum com uma festa. Na tradição Etíope, o vida de Cristo descreve o padrão para a igreja seguir. Se Cristo jejuou, então jejuar é uma disciplina espiritual importante na medida que buscamos ser conformados à sua semelhança. Além disso, o clero deve tomar a dianteira no que se refere ao jejum, como se vê no “jejum dos apóstolos” ou no “jejum dos profetas”.

Terceiro, o jejum dá forma à cultura. A prática Quaresmal parece ter pouco impacto na cultura do Ocidente. Temos o nível mais alto de consumo de carne do mundo, e, se a tendência continuar, isso irá crescer dramaticamente nos próximos anos. O que comemos também afeta a nossa mordomia da criação de Deus. Além dos problemas de saúde, o consumo exagerado também impacta o ambiente. Independente da sua posição sobre o aquecimento global ou mudança climática, grandes áreas de terra e vastas quantidades de recursos são devotadas à produção de carne para encher as nossas barrigas.

Em contraste, a observância da Quaresma teve um impacto real na cultura Etíope. A comida Etíope é uma cozinha Quaresmal. Séculos de liturgia Cristã criaram uma variedade de comida vegetariana para jejum que simplesmente não podem ser explicada à parte da prática da Quaresma. Jejuar numa frequência regular pode parecer um pequeno passo, mas a cozinha Etíope pode nos dar um vislumbre de onde nossos pequenos passos podem nos levar.

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