Visando o Shalom, 2

Leonardo Daneu Lopes
Basileia
Published in
8 min readJan 22, 2018

por Rich Lusk

A igreja primitiva tomou posse do Império Romano dentro de poucos séculos, em grande parte porque ela ministrou sacrificialmente em palavra e ação. A igreja providenciou serviços e cuidados que o império e as religiões pagãs não conseguiam em tempos de crise. O testemunho fiel daqueles Cristãos que serviam trouxe grandes frutos na transformação da cultura. O ministério sacrificial da igreja primitiva preparou o terreno para a edificação da Cristandade.

No tempo da Reforma, Lutero enfatizou a conexão entre fé e amor. “As boas obras que impomos a nós mesmos levam-nos apenas a nós mesmos, de modo que buscamos apenas o nosso próprio benefício e salvação. Mas os mandamentos de Deus nos levam em direção às necessidades dos nossos próximos, de modo que por meio desses mandamentos sejamos úteis apenas aos outros e à sua salvação… Pois se a fé não duvida do favor de Deus, será fácil para nós sermos graciosos e favoráveis ao próximo, independente de quanto ele tiver pecado contra nós.”

À medida que os Reformadores recuperaram a palavra do evangelho, eles também recuperaram o chamado holístico do povo de Deus. Justificação pela fé tornou-se o incentivo para o ministério da misericórdia. Precisamente porque Jesus havia resolvido a questão da nossa salvação, estamos agora livres das obras focadas em nós mesmos para alcançar a nossa própria salvação; em lugar disso, podemos dirigir as nossas energias e obras em favor do bem do nosso próximo. Como Lutero disse, Deus não precisa das nossas boas obras, mas o nosso próximo certamente precisa!

Para Lutero, a fé consiste e vive nas obras de amor e serviço. A fé é uma “coisinha ocupada.” Lutero recuperou a doutrina do sacerdócio de todos os santos. A partir disso, Lutero não queria dizer que não temos necessidade de um sacerdote, mas que somos todos sacerdotes uns para os outros. Lutero expressou essa verdade com uma linguagem impressionante: “Um Cristão é um senhor perfeitamente livre de todos, sujeito a ninguém. Um Cristão é um servo perfeitamente zeloso, sujeito a todos.” O evangelho providenciou a base e o poder para viver uma vida radicalmente parecida com Cristo. Nosso sacerdócio consiste em vidas de serviço sacrificial, em união como nosso Sumo Sacerdote:

“Assim como nosso próximo está em necessidade e tem falta daquilo que temos em abundância, nós estávamos em necessidade diante de Deus e tínhamos falta da sua misericórdia. Portanto, assim como o nosso Pai celestial veio livremente em Cristo para o nosso socorro, assim devemos livremente ajudar o nosso próximo através do nosso corpo e suas obras, e cada um de nós deve se tornar como se fosse um Cristo ao outro, de modo que sejamos Cristos uns para os outros e Cristo se torne o mesmo em todos, isto é, que sejamos verdadeiramente Cristãos.”

E novamente: “[O Cristão] não faz distinção entre amigos e inimigos ou antecipa a gratidão ou ingratidão, mas ele, com a maior liberdade e boa vontade, empenha a si mesmo e tudo o que tem, quer ele desperdice a si mesmo no ingrato ou ganhe uma recompensa.” E: “Nós concluímos, portanto, que um Cristão não vive em si mesmo, mas em Cristo e no seu próximo… Ele vive em Cristo através da fé, e em seu próximo através do amor.”

Lutero afirmou: “Mas se vocês não [servem o seu próximo], de que serviria para vocês se vocês realizassem todos os milagres dos santos e derrotassem todos os Turcos, e ainda assim fossem encontrados culpados de terem desconsiderado a necessidade do seu próximo e terem, assim, pecado contra o amor? Pois Cristo no último dia não perguntará quanto oramos, jejuamos, peregrinamos, fizemos isso ou aquilo para nós mesmos, mas quanto bem fizemos aos outros, até mesmo ao mais pequenino [Mt 25:40–45].”

Lutero também conecta o cuidado para com os pobres com a estrutura e o fluxo da liturgia, particularmente a Ceia do Senhor: “Quando você tiver participado deste sacramento, então… você deve por sua vez compartilhar os infortúnios do companheirismo… à medida que amor e apoio são dados a você, você deve transmitir amor e apoio a Cristo através de Seus necessitados… [No sacramento, é como se Cristo estivesse dizendo a você], Eu tomarei seu sofrimento e adversidades como meus e os carregarei por você, de forma que, por sua vez, você possa fazer o mesmo por mim e pelos outros, permitindo que todas as coisas sejam propriedade comum, em mim e comigo.”

Em resumo, para Lutero, comunidade eucarística era um modelo para comunidade cristã e compaixão.

Calvino deu continuidade à mesma herança Reformada. Em Genebra, ele reformou ministérios diaconais, enfatizando a necessidade de a igreja, ao invés do estado, cuidar dos pobres. Sob sua instrução, Genebra construiu hospitais, escolas, e abrigou mais de 50.000 refugiados reformados. De fato, até hoje, a Genebra do século dezesseis continua sendo um dos maiores projetos de desenvolvimento comunitário em toda a história.

Há vários outros exemplos de grandes clérigos tomando a frente, pregando a graça e fazendo justiça. Nos séculos 17 e 19, respectivamente, Richard Baxter e Thomas Chalmers, entre outros, buscaram re-instituir uma forma paroquial de cuidado pastoral, ministrando holisticamente às pessoas vivendo numa localização geográfica em particular. Em vez de ministrar apenas a um seleto “remanescente santo” numa área, eles viram que foram chamados a pastorear paróquias inteiras. Mesmo aqueles que não tinha nenhum interesse aparente na Igreja ou no Evangelho deveriam estar sob supervisão pastoral, com o objetivo de Cristianizar toda a região.

Esses homens tomaram a responsabilidade pelo bem estar espiritual, econômico, educacional e físico de seus territórios. Eles juntaram o trabalho do pastor (pregar e ensinar) ao trabalho dos diáconos (ministério de misericórdia e alívio da pobreza). Como resultado, suas igrejas foram para o centro de suas respectivas comunidades e exerceram uma grande influência benéfica.

Baxter treinou outros pastores a levar adiante seu programa de cuidado paroquial, reivindicando território para o reino de Cristo através de evangelismo e discipulado. Chalmers também construiu o reino de Cristo. Ele recusou auxílio do governo, ao invés, pediu que seu povo desse sacrificialmente. Ele ordenou programas diaconais que de forma eficiente e compassional ajudaram os pobres e sofredores em áreas urbanas. Taxas foram cortadas e juízes foram deixados sem casos para resolver porque a Igreja era muito eficaz em tomar conta total do bem estar social da comunidade.

Uma boa parte da autoridade e influência da Igreja está ligada à sua forma adequada de executar os ministérios de serviço. O Evangelho é muito mais poderoso quando casado a um efetivo ministério de misericórdia. Por vezes os inimigos da Igreja entenderam isso melhor que seus próprios membros. Por exemplo, no quarto século, Juliano o Apóstata procurou extinguir a ascensão da Igreja ao poder criando um sistema imperial de bem estar social que sobrepujaria os Cristãos. Ele falhou miseravelmente; ninguém conseguiria ultrapassar a comunidade da aliança em servidão naqueles dias. Na Rússia do século vinte, o partido comunista de Stalin proibiu “atividades culturais ou de caridade da igreja”, como explicou um porta-voz de Kremlin, “O Estado não pode tolerar nenhum desafio à sua reivindicação dos corações do povo russo.” Os comunistas sabiam que qualquer instituição que ajudasse os pobres teria a lealdade do povo.

É importante notar que o chamado bíblico à misericórdia é bem distinto das formas mais liberais, estadistas de bem estar. Buscamos dar uma mão às pessoas, não distribuir. Como Amy Sherman observou, enquanto que abordagens seculares perguntam: “Quais são as suas necessidades?”, uma abordagem bíblica pergunta, “”Quais são as intenções de Deus para você?” Justiça social bíblica não é uma questão de “direitos”, mas de ”restauração.” Significa viver de acordo com projeto de Deus para a humanidade e ajudar outros a fazer o mesmo.

O objetivo não é a igualdade, por si só, como nos programas de redistribuição de riquezas do estado de bem estar social. Em vez disso, nossa abordagem visa ajudar a pessoa a começar a viver a vida do shalom, sob a compreensiva benção de Deus. Shalom, a palavra em hebraico para “paz”, resume o plano de Deus de justiça e misericórdia para o seu povo. Visamos ajudar as pessoas a frutificarem, prosperarem e crescerem em todos os aspectos.

Nicholas Wolterstorff define a noção bíblica de shalom: “O estado de shalom é o estado de frutificação em todas as dimensões da própria existência; na relação com Deus, na relação com os companheiros humanos, na relação com a natureza, e na relação consigo mesmo … Uma tentação sempre à vista dos evangélicos é assumir que tudo o que realmente importa para Deus a respeito do humanos aqui na terra é que eles nasçam de novo e portanto alcancem a salvação … [No entanto], o que Deus deseja para os seres humanos é o modo compreensível de prosperidade que a Bíblia chama de shalom … O amor de Deus pela justiça é fundamentado no anseio de Deus pelo shalom das criaturas de Deus e na tristeza de Deus por sua ausência.”

Nosso horizonte inclui ajudar alguém com suas necessidades “mundanas”; mas também se estendem à questões de alcance à eternidade. Não apenas fazemos perguntas como: Que necessidades financeiras e sociais essa pessoa tem? Mas também: Como posso ajudar essa pessoa a viver sua vida para a glória de Deus? Como posso ajudar a restaurar essa pessoa à imagem de Deus? Como essa pessoa pode se tornar parte (de forma mais plena) da nova humanidade de Deus?

Claro, devemos ter discernimento em nosso dar tanto de tempo quanto de recursos. Devemos cuidadosamente ponderar a situação da pessoa em necessidade quanto o chamado de Deus para nós. Certamente companheiros fiéis têm prioridade (Gal 6:10), e devemos mesclar atos de misericórdia com sabedoria e discernimento. Nem todos estarão em posição de ajudar num centro de crise de gravidez, ou ajudar numa cozinha pública, ou gerenciar uma despensa de alimentos, ou doar roupas usadas, ou dar aconselhamento aos confusos, ou ajudar o solitário, ou educar o ignorante. Há diferentes dons no corpo e diferentes estações da vida que todos nós passamos.

Enquanto muito da nossa piedade será incondicional e indiscriminada — e portanto, “arriscada” — haverá momentos em que nos recusaremos a ajudar as pessoas, porque fazê-lo somente alimentaria padrões de vida destrutivos e desumanizadores. Mas em nossas igrejas locais, devemos reconhecer que nossa comunidade tem a responsabilidade pelo bem estar das pessoas no lugar em que Deus nos colocou. Devemos estar atentos ao fato de que a missão da Igreja é holística porque o evangelho traz renovo à vida humana em sua plenitude. Proclamamos o Cristo inteiro como Salvador e Rei, pelas nossas palavras e obras, para o pessoa inteira, corpo e alma.

Nada menos que isso vai funcionar. Essa é a missão de shalom da Igreja, trazer a justiça e a misericórdia de Cristo sobre o nosso mundo caído.

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