Desejo Secreto e a história do BDSM no Brasil
O Desejo Secreto foi mais que um site, ele era uma das principais fontes de informação de qualidade para a comunidade BDSM brasileira dos anos 2001 até 2011. Nesta época em que havia pouco material de referência — em especial técnica — em português sobre o tema, o Desejo Secreto acabou se tornando uma espécie de norte para quem estava ávido por viver seus desejos e não sabia por onde começar.
Quando ele foi lançado, há quase 20 anos, apesar da estética “sadomasô” e do conceito de sadomasoquismo ser algo já conhecido na sociedade brasileira, a cultura BDSM não era uma ideia tão disseminada ou aceita como é hoje. Para se ter uma ideia, o Fetlife, rede social voltada a praticantes de BDSM e fetichistas, foi criado apenas em 2008. E o livro 50 Tons de Cinza, que por bem ou por mal popularizou a cultura BDSM, seria lançado apenas em 2011 (aqui no Brasil, em 2012). Sim, é claro que na década de 2000 existiam outros sites sobre o tema, quem viveu o período e tinha acesso à Internet provavelmente conhece alguns, mas o Desejo Secreto foi provavelmente o maior deles em termos de conteúdo escrito na língua portuguesa (fiz uma compilação de todos os textos do site e o material coletado rendeu mais de 700 páginas).
O site era tão popular, que muitas vezes quem já estava no meio indicava-o para os novatos se orientarem e adquirirem algum conhecimento básico.
“Logo de cara eles nos davam […] um site […que] era um guia sobre BDSM […]. Passavam o link do site e falavam ‘vai lá, lei, estude e depois volte para tirar suas dúvidas’. […] Fazíamos um grupinho numa sala, à parte da sala de sadomasoquismo, onde íamos tirar nossas dúvidas” — depoimento de Desirée, São Paulo
BDSM antes das Internet
Juntando praticantes na década de 80
Se você é jovem, chegou ao meio após o boom das redes sociais e quer entender a relevância do site Desejo Secreto, é preciso voltar um pouco antes na história, mais precisamente à década de 80. Wilma Azevedo, a rainha literária do sadomasoquismo no Brasil, escrevia sobre o tema desde a década de 70. E esta desbravadora, escrevendo livros e respondendo seus leitores em revistas eróticas, abriu caminho tanto para que o S&M fosse nacionalmente conhecido, quanto para que BDSMers (termo que não existia na época) soubessem que não estavam sozinhos.
Naqueles tempos pré-internet, achar outras pessoas com quem viver seus fetiches não era exatamente uma tarefa fácil. Os praticantes encontravam uns aos outros publicando e buscando anúncios em revistas e jornais eróticos. As conversas começavam por cartas, via caixa postal (para quem não sabe, é uma caixa que se aluga no correio para receber cartas sem ter de revelar o endereço da própria casa). Era como achar uma agulha num palheiro. O termo SSC (São, Seguro e Consensual) nasceria em 1983 e só ganharia o mundo em março de 1993 com as marchas para os direitos das lésbicas, gays e S/M-Leather-Fetish.
“Até recentemente, o BDSM no Brasil era restrito a poucas e raras sessões de classificados em algumas revistas eróticas inexpressivas. — tradução livre de trecho do livro Sadomasochism: Powerful Pleasures (pág. 262, 2006)
No comecinho da década de 80, a ideia de uma comunidade ou sequer de uma rede de BDSMers era apenas um sonho. E foi atrás desse sonho que um homem, na época escravo de Wilma Azevedo, tentou iniciar um cadastro nacional de praticantes de sadomasoquismo. Era a Associação Brasileira de Sadomasoquismo, a ABS. Seu criador atendia pelo codinome Cosam Atsidas (leia este nome ao contrário). Wilma Azevedo conta em seu blog: “Quando Cosam Atsidas formou a Associação Brasileira de Sadomasoquismo, parabenizei-o. Era o prelúdio da semente despertando”.
Segundo um relato atribuído a Greco, a ABS teria sido fundada em 1983 e atingido um número de cem participantes. Mas esse ousado projeto não foi adiante. “Imaginem se a ABS estivesse ativa desde de 1983. O que teríamos hoje em nosso país em termos de BDSM?”, questiona Greco. Wilma Azevedo, em seu livro “Sado Masoquismo Sem Medo”, conta que as tentativas de montar associações antes da popularização da Internet não foram poucas:
“Muita gente, como Cosam Atsidas, tentou montar associações que, no entanto, foram extintas por falta de interessados para assumir mensalidades ajudando nas despesas de correio e tudo mais. Sem ajuda financeira, havia muito trabalho e pouco retorno” — Wilma Azevedo (pág 96, 1998).
Ela própria, em 1985, idealizou o Fantasy Club, uma espécie de grupinho de WhatsApp das antigas, unindo os sadomasoquistas “através de correspondência para troca de informações e amizade” (Azevedo, 1998 pag 81). Talvez um dos problemas enfrentados por essas iniciativas, era o fato de que alguns dos possíveis associados, não conhecendo outros praticantes que pudessem dar referências, podiam não se sentir seguros.
“Para conhecer as pessoas era difícil, era tudo meio obscuro. A gente não sabia quem realmente estava por trás e nem até que ponto as revistas em si tinham credibilidade.” — Senhor ALUCARD, praticante de BDSM.
Se arriscar era pré requisito para quem quisesse viver seus fetiches nessa época.
Anos 90 e o S&M sai do armário
Até o início da década de 90, além da dificuldade de encontrar parceiros, era também custoso conseguir textos, fotos e vídeos sobre BDSM. Se você quisesse material para aprender, era bom se preparar para importar e pagar caro por isso. Aqui em São Paulo, você poderia ir na Erotic Shop Ateliê Eliana, do Gunter Meier e conseguir algumas coisas interessantes. A loja era um misto de videolocadora e sex shop onde se podia encontrar, dentre outros tesouros, diversos vídeos sobre o tema.
Mas o mundo estava mudando. Em 1992, uma onda de S&M inundou a cultura. Foi o ano de lançamento do filme Instinto Selvagem, Gemidos de Prazer e Lua de Fel. Madonna lançava seu álbum “Erotica”, juntamente com o video clipe da canção de mesmo nome e seu polêmico livro Sex. A produção de Madonna era carregada de elementos S&M. E toda essa explosão cultural de ideias S&M repercutiu no ano seguinte, segundo relata Wilma Azevedo:
“Em 93, as danceterias paulistanas começaram a exibir uma ‘onda light’ com referência ao tema. Acredito que responsáveis diretos por isso foram os filmes dos grandes diretores.” — Wilma Azevedo (pag 26, 1998)
E foi justamente em 1992 que uma paulista de trinta e dois anos, que em breve se tornaria também uma das grandes figuras do BDSM nacional, publicou um anúncio em uma revista erótica buscando alguém que a dominasse. Um dos que responderam foi nada mais nada menos que Cosam. Após trocarem correspondências, por fim se conheceram pessoalmente e organizaram um encontro. Então, meses depois, no dia 9 de dezembro de 1992, os dois e mais três pessoas se encontraram no extinto bar Dom Quichoppe, na Av. Ibirapuera em São Paulo. E daí surgiu um grupo que foi de extrema importância para o BDSM nacional: o grupo SoMos (as duas letras maiúsculas formam a sigla SM).
A paulista (que em 1992 se identificava como submissa e usava o codinome SaMara) viria a ser Mistress Bárbara Reine, a pioneira que encabeçou o grupo SoMos, agregando praticantes e atuando com propósitos educativos promovendo munchies e posteriormente workshops sobre diversos temas de interesse da comunidade. Por meio do grupo, iniciantes e entusiastas tinham a oportunidade de experimentar e conhecer SM na prática e ter acesso à algum material escrito. Entre idas e vindas, o grupo SoMos ficou ativo por cerca de 10 anos, até meados de 2002, em São Paulo e ocasionalmente no Rio de Janeiro.
“Quando dei a entrevista para a ‘repórter’ da revista Nova em 93, eu soubera de um grupo que se reunira por umas três vezes, tentando formar o que chamavam de SoMos. Contei isso a ela” — Wilma Azevedo (pág 96, 1998).
A Internet e o surgimento do Desejo Secreto
No final da década de 90, com a Internet se popularizando, surgem grupos e listas de discussão on-line e ganha-se acesso fácil à sites estrangeiros e a um mundo de conteúdo. Isso permitiu uma maior facilidade tanto para encontrar outros praticantes quando para encontrar material escrito.
Praticantes brasileiros de BDSM só vieram, lentamente, a acordar enquanto grupo ou coletivo há alguns anos, primeiro com videotexto [um sistema pré-Internet que surgiu no fim da década de 70] e, recentemente, com a Internet, quando houve um boom de acesso à centenas de sites estrangeiros e salas de chat.
O surgimento de grupos e listas de discussão — muitos deles dedicados a tipos específicos de relações BDSM — escalonou rapidamente. ” — tradução livre de trecho de Sadomasochism: Powerful Pleasures (pág. 262, 2006)
No ano 2000 o próprio SoMos tinha um site no ar (www.nossomos.com.br), com 500 acessos diários, 600 sadomasoquistas (como se dizia ainda na época) credenciados e alguns textos (acesse a Wayback Machine e veja como era o site em julho de 2000). Mas ainda havia uma lacuna a ser preenchida com relação à produção e divulgação de conhecimento sobre BDSM: algo parecido com uma imensa biblioteca que pudesse ser acessada de qualquer lugar do país.
Aí nasce o Desejo Secreto. O site era abundante em textos com todo tipo de conteúdo relativo a BDSM. Eram abordados diversos assuntos, desde como diferenciar BDSM de abuso, textos com viés filosófico, técnico, notícias, contos, orientações dadas por profissionais da área da saúde e, posteriormente, uma sessão de classificados.
Textos da história do BDSM mundial
Havia no site também traduções de textos internacionalmente relevantes. Foi o Desejo Secreto que disponibilizou, por exemplo, a primeira tradução para o português da lista de perguntas frequentes do soc.subculture.bondage-bdsm, um importante grupo de discussões americano, que hoje faz parte dos primórdios do BDSM na internet. O soc.subculture.bondage-bdsm começou, na verdade, na Usenet em 1989 (um precursor dos fóruns da internet, que contava com nove classificações de grupos de notícia e discussão), ainda antes da sigla SSC se tornar conhecida mundialmente, e se chamava alt.sex.bondage (alt, era uma classificação que designava um grupo menos controlado e em geral com tema mais específico). Durante a década de 90, porém, o grupo começou a ser invadido por spam e um outro se formou em 1996, recebendo o nome soc.subculture.bondage-bdsm (soc significava “social discussions”). Neste “fórum”, praticantes de BDSM anonimamente conversavam entre si, partilhando experiências e dúvidas. O administrador do grupo, Rob Jellinghaus, selecionou as perguntas mais frequentes feitas pelos frequentadores, respondeu-as e disponibilizou as respostas nessa lista. O Desejo Secreto, após contatar Rob, foi escolhido por ele como tradutor oficial da lista para o português.
“O site não tinha pretensão de ser bíblico para comunidade nenhuma. Acho que quem organizou teve muito bom senso nisso” — Tavi
Textos da Revise F65 também foram traduzidos. O Revise F65 era um projeto que tinha como objetivo criticar o CID-10 e pedir a retirada do fetichismo, travestismo e sadomasoquismo da lista de diagnósticos psiquiátricos. Na época, nem sonhava-se com a vinda do CID-11, lançado em 2018, que passa a levar em conta a consensualidade para definir o que é não patológico. Além dessas importantes traduções, há também traduções de textos do David Steinberg, o mais conhecido ativista do SSC (São, Seguro e Consensual) no meio BDSM, Jack Rinella, Susan Write entre outros. Portanto, para aqueles que chegavam ao meio querendo viver suas fantasias e não liam inglês, o Desejo Secreto acabava sendo uma ferramenta importante para aprofundar conhecimentos.
Uma base teórica comum para os praticantes
Mesmo que você não tenha conhecido o site, acho que agora você talvez faça alguma ideia da importância dele. E, por conseguinte, das pessoas que o criaram.
“Este site foi a extensão natural do entusiasmo de um grupo de amigos, de pessoas que se encontraram por conta do interesse pelo BDSM e que tinham um universo de pontos de vista em comum: Lord Conrad e Liu, Votan e Delmonica, Edgeh e Beea.
Era o início de 2001. O que mais nos motivava era a noção do quanto fazia falta uma fonte adequada e confiável sobre o assunto, um site informativo, educacional, que pudesse servir de referência quando o assunto fosse o BDSM. Houve uma convergência de vontades e possibilidades de cada um, que acabou dando certo”. — Equipe do Desejo Secreto
Lord Conrad, Liu (que depois se tornou Mégara), bee_a. Votan, Delmonica e Edghe (autor do livro “Sem Mistério, Uma Abordagem (na) prática de bondage, dominação, sadismo e masoquismo”) faziam o site rodar. E além dessa equipe fixa, o Desejo Secreto também estava aberto para colaboradores, havendo inclusive uma sessão no site para os interessados. E, para tentar manter um padrão de qualidade, as instruções para os que queriam escrever para o site enfatizavam que as fontes utilizadas deveriam ser citadas no texto. Algo realmente interessante pois, com as referências disponíveis, o leitor poderia seguir o rastro para o material original caso quisesse saber mais e fazer suas próprias avaliações.
“[…] As pessoas tinham esse cuidado, elas escreviam algo que tinham pego e linkavam pro material de origem. Aí como eu tinha inglês eu fui atrás, mas ter esse material em português era genial” — depoimento de Senhor H, Rio Grande do Sul
O Desejo Secreto produziu também o primeiro dicionário de termos BDSM em português do Brasil. Foi uma tentativa de trazer para o nosso idioma e a nossa realidade conceitos que até então eram basicamente copiados do inglês. Talvez tenha sido um dos primeiros esforços mais meticulosos de dar uma base comum de entendimento para que os praticantes de BDSM no brasil pudessem falar a mesma linguagem. O propósito informativo e educativo do site era claro.
“Nos últimos dois anos, apareceram vários sites em português. Um deles, Desejo Secreto, o único até o momento com um claro propósito educacional, oferece um número razoável de textos teóricos” — tradução livre de trecho do livro Sadomasochism: Powerful Pleasures (pág. 263, 2006)
A partir desse trabalho de informar a comunidade BDSM com qualidade e com clareza, surgiu do Desejo Secreto em 2002 uma editora, a Companhia do Desejo. O tema das publicações seria “erotismo e sua diversidade, incluindo temas não-convencionais como BDSM, Sadomasoquismo, Homoerotismo, Fetiches, etc”, dizia o site na época. O único título lançado, porém, foi o livro Sem Mistério — Uma abordagem (na) prática de Bondage, Dominação, Sadismo e Masoquismo (2002).
“Como uma extenção do Desejo Secreto, uma nova e pequena editora dedicada a temas BDSM surgiu no mercado, lançando como seu primeiro título um livro com explicações desmistificantes e educativas sobre o assunto. Então, com seus primeiros e excitantes passos, uma cultura BDSM brasileira nasceu.” tradução livre de trecho do livro Sadomasochism: Powerful Pleasures (pág. 263, 2006)
O fim de um projeto de uma década
Mas, manter um site e produzir conteúdo toma tempo e, como o trabalho para mante-lo era voluntário, alguns dos criadores originais passaram a ter dificuldades em continuar colaborando com o projeto. Ao longo dos anos a equipe foi mudando e com o tempo as atualizações, que eram semanais, passaram a se espaçar ao longo do tempo.
“Durante um bom tempo as atualizações foram semanais, mas isso se mostrou inviável com o passar do tempo, principalmente depois que as obrigações do dia-a-dia não deixaram tempo para mais essa atividade. Dom Felix fez a parte de webmaster por um ano e meio e desde então não temos equipe fixa e atualização regular.
Mesmo com as poucas atualizações, o site não se distanciou da proposta inicial e tem uma visitação que nos mostra que o BDSM tem hoje uma visibilidade imensamente maior do que se pode imaginar.
Essa maior visibilidade vem junto com uma maior responsabilidade, porque somente informando de maneira adequada podemos melhorar o nível de entendimento que as pessoas, de uma maneira geral, podem ter a respeito do que fazemos.
Porém, questões alheias a nossa vontade nos impedem de manter o site como gostaríamos. Enquanto isso, o conteúdo continua disponível à consulta de mais de 25 mil visitantes por mês” — Equipe do Desejo Secreto [6]
Era o início do fim do Desejo Secreto, que ficou no ar por uma década fazendo parte da vida e da formação de toda uma geração de BDSMers.