Preferir SSC a RACK e PRICK no BDSM?

Equina Nur
BDSM de iniciante
Published in
8 min readJan 12, 2019

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O texto que se segue é uma tradução do texto “In defense to SSC and why I am not a PRICK” (Em defesa ao SSC e porque eu não sou um PRICK), do sádico americano Zetsu. No texto, ele faz uma crítica aos conceitos de RACK e, em especial, de PRICK e argumenta porque SSC, para ele, é a melhor orientação ética. O título é satírico, pois PRICK também significa “pica, pinto” em inglês, o equivalente em portugês a um cuzão, um babaca, um filho da puta ou qualquer outro insulto do tipo que possam ocorrer ao leitor.

Um dos pontos mais interessantes dessa crítica, ao meu ver, é a discussão de quem é responsável pelo quê numa relação entre top e bottom.

[Os trechos em negrito nesta tradução foram negritados pela autora do blog e não constam no texto original. A autora não partilha necessarimente das colocações do texto original e o traduziu por sua riqueza crítica e pelas provocações acerca das ideias sobre a responsabilidade entre os praticantes de BDSM]

Em defesa ao SSC e porque eu não sou um PRICK — por Zetsu

Considero a progressão do SSC para RACK e PRICK uma progressão interessante, mas também uma que sinaliza para mim uma tendência perturbadora [O autor se refere a um fato histórico: o surgimento do SSC e depois, como uma crítica a ele o RACK (1999) e como crítica ao RACK o PRICK (segundo o site Kinkly perto de 2009). A progressão ao qual ele se refere é a progressão desses conceitos na história do BDSM Americano].

Nunca me senti incomodado pela palavra “Seguro” do SSC porque sempre a considerava significando que temos que estar o mais seguros possíveis naquilo que fazemos e que devemos considerar a segurança de nossos parceiros como parte crucial dos calculos para aquilo que fazemos.

Mas é aqui que o ponto crucial da questão está: eu acredito que a segurança é, em sua maior parte, a responsabilidade do parceiro dominante. E isso merece algum esclarecimento. [Os exemplos que darei] podem ser específicos ao tipo de coisa que faço, mas eles não são tão incomuns a ponto de não poderem servir como exemplo.

1. Bondage. Quando eu amarro alguém, meu objetivo é torná-los impotentes. Quando alguém está impotente, a pessoa que o colocou nessa posição carrega uma responsabilidade extra pelo seu bem estar.

2. Confiança. Confiança é algo muito importante pra mim. Eu quero e preciso que meu parceiro seja capaz de confiar em mim em nossas cenas, confiar que eu vou mantê-lo o mais seguro possívei e, mais direto ao ponto, confie que eu sei o que diabos estou fazendo. Eles confiaram em mim porque eu assumi a responsabilidade pelo que acontece na nossa cena. E porque eu trabalhei duro por um bom tempo para aprender minhas habilidades, de maneira que não farei coisas para as quais eu não estou preparado ou não tenha alguma expertise.

Confiança também implica numa desigualdade de responsabilidade. Quando peço que alguém confie em mim eu chamo para mim uma carga maior de responsabilidade.

3. Expertise. Em muitos casos, quando faço amarrações com cordas eu saberei muito mais do que estou fazendo que meu(minha) bottom. Acho que isto se aplica a muitos dos estilos de jogos que praticamos. É mais provável que um(a) top tenha mais conhecimento técnico e experiência em seus kinks (taras ou fetiches) que seus bottoms.

Então, sobre uma perspectiva de SSC, a responsabilidade repousa predominantemente no top. Predominantemente, mas não exclusivamente. Eu diria.que para que a prática seja segura, o submisso ou bottom tem três responsabilidades:

  1. Comunicação. O(a) submisso(a)/bottom tem que ter a habilidade e a disponibilidade de se comunicar com seu parceiro em uma negociação e durante a cena, alertando-o quando as coisas não estão funcionando como deveriam ou se há uma compreensão errônea de alguma intenção. Eles também devem estar disponíveis para parar a cena se sentirem que há um problema que está ameaçando sua saúde ou segurança.
  2. Honestidade. Submissisos(as) ou bottoms também precisam ser completamente honestos e transparentes sobre suas questões, gatilhos, problemas de saúde, lesões, histórias e limitações potenciais.
  3. Consciência e percepção [Awarness, no original]. Para que 1 e 2 sejam possíveis, eles(as) também tem que ter uma compreensão suficientemente sofisticada dos seus próprios corpos e de suas próprias questões psicológicas para poderem partilhar este conhecimento de forma realística, aberta e transparente.

Dar essas informações é o que permite um dominante bem preparado e instruído a agir de uma maneira que é segura e possível. [ver plano de fundo do bottom]

Quando acidentes acontecem, o que inevitavelmente acontecerá, a pergunta que fazemos é “O que poderíamos ter feito para prevenir isso e que medidas podemos tomar para que isto não aconteça de novo ou para minimizar os risco?”. Não se trata de culpar, mas sim de melhorar os próprios protocólos de segurança para minimizar riscos futuros e tornar as coisas o mais segura possíveis.

Aí vem o RACK e o que acontece?

Nós vemos uma reação à palavra “seguro” e a substituímos pelo termo “consciência dos riscos”. Mas a questão é: quem precisa ter consciência dos riscos?

Supostamente, sob o SSC o dominante/top já está ciente dos riscos. E em lugar nenhum eu vi RACK usado para justificar os tops fazerem algo mais arriscado só quando estivessem mais informados ou mais cientes dos riscos. Ao invés disso, ele é geralmente usado para desviar da responsabilidade. “Bem, nós dois sabíamos que isso era arriscado.” E este é um jeito de nos dar permissão para fazer coisas que podem estar acima do nosso nível de expertise, de nos aventurar em novas áreas nas quais talvez não saibamos o que estamos fazendo.

O que vejo acontecendo é uma mudança da carga do top para o bottom. O RACK fala que os bottoms precisam entender os riscos para eles mesmos e reconhecerem que podem acabar se machucando.

OK, justo. Porém, eu ouvi dezenas (talvez centenas) de negociações de cenas com cordas, muitas delas com um bottom sendo amarrado pela primeira vez. E nenhuma dessas negociações serviu para que o bottom estivesse ciente dos riscos. Quantas vezes você ouviu “Faremos uma amarração com os braços para trás [em Inglês o autor usa box tie, o que equivaleria à amarração básica do shibari feita na parte de cima do corpo]. Um dos riscos é um dano aos nervos que faz você perder o uso das mãos por até três meses.”? Ou, “Como é sua primeira suspenção, você deve saber que se a corda principal [main line, no original] se quebrar você poderá sofrer danos aos ossos da face, paralisia ou até mesmo morte”?

Então o RACK implica ao menos alguma responsabilidade por parte do top para que ele faça o bottom estar “ciente dos riscos”, mas dá um passe livre a partir do momento em que a pessoa foi informada do risco.

Já ouvi, literalmente, um top falar para um bottom que foi machucado em uma cena “Eu te disse que eu era um edge player e que eu era RACK.”. Claro que ele não acrescentou “e eu não faço idea do que diabos estou fazendo”.

O ponto central da questão é que não são os dominantes e os tops que estão sujeitos aos riscos. Ainda não conheci um top que pratica com cordas e que perdeu seis meses de trabalho por uma lesão ocorrida devido a uma suspensão. A maneira com a qual RACK está sendo usado é frequentemente ignorando o fato de que é o bottom que está sujeito a todos os riscos. Tops não deveriam dizer que são RACK, eles deveriam dizer “VOCÊ precisa ser RACK se você quiser brincar comigo.” Neste momento o bottom deveria dizer “Quais são os riscos?” e se algo acontecer na cena que não estava nessa lista, aí acho que eles tem um motivo justo para dizer ao top que não estava “ciente dos riscos.”

Vejo RACK como uma forma de desviar a culpa do top para o bottom. Na verdade, vi isso acontecer em muitas ocasiões. Você consentiu com isso, é sua própria culpa que você se macuchou.

O que nos trás ao PRICK.

Isto dissolve o último link entre os parceiros. Como um dominante ou top sob o RACK, havia ao menos o argumento de que eu precisava informar meu parceiro de qualquer risco, especialmente se nossa base de conhecimento ou experiência é desigual. O PRICK tira esta parte.

NÓS [o autor se refere aos tops] não somos mais responsáveis pela nossa cena — o bottom é. Pessoalmente responsável.

Então sob PRICK, pelo que exatamente o top é responsável? Que culpa não pode ser desviada para o bottom?

Afinal de contas, nós nos livramos de velhas limitações quando declaramos que “Nada que fazemos é seguro”. E enfim, ter de informar seu parceiro dos riscos, é um fardo excessivo [ironia].

Não há situação em que o top seja responsável por algo! Toda situação é um “risco” para o qual o bottom deveria ter tido consciência antes de jogar [antes da sessão ou cena]. Afinal, o bottom é responsável por sua própria segurança. Então, quando eles se machucam, só podem culpar a si mesmos.

O top comete erros? Isto acontece. Todos sabemos que isso acontece. Nada do que fazemos é seguro. Se você não aceita que erros e acidentes acontece, talvez esse não seja o estilo de vida pra você.

Quando vejo as palavras “responsabilidade pessoal” sempre olho para elas com cinismo. Geralmente o que este termo significa é que pessoas com poder ou dinheiro não querem mais assumir nenhuma responsabilidade por aqueles que são menos afortunados ou menos capazes do que elas são. Eles veem o bem estar dos outros como um fardo, ao invés de uma obrigação social.

Se eu visse o PRICK como um movimento a respeito de tops and dominantes realmente se tornando mais pessoalmente responsáveis, eu seria o primeiro da fila para assinar, mas o que parece para mim é mais uma, em uma fila de diversas tentativas, de fazer exatamente o oposto.

O que sempre vi no SSC é a exigência que dominantes e tops sejam responsáveis por suas cenas. Que enquanto dominantes nós aceitemos a autoridade, o controle e com isso a carga da responsabilidade e a recompensa da confiança.

Francamente, me sinto confortável por ser encarregado e ser responsabilizado pela segurança das minhas cenas. E também em responsabilizar meus parceiros pela parte de responsabilidade deles (comunicação, honestidade e consciência).

Além disso, fico muito preocupado quando vejo os termos “ser responsabilizado” e “ser encarregado” descritos como “culpar”.

Eu acredito que todos somos pessoalmente responsáveis pelo que fazemos um ao outro, mas que somos responsáveis por coisas bem diferentes. PRICK é uma tentativa por nos fazer responsáveis pelas mesmas coisas e isto, eu acho, é um movimento perigoso, um que retira quase completamente a responsabilidade e a responsabilização do dominante ou top e a coloca quase que completamente no submisso ou bottom.

AVISO: As ideias, exemplos e opinões expressas aqui não são regras e não pretendem se constituir enquanto tal. Existem pela internet materiais que expressam outras opiniões e que podem ser mais adequados à sua visão, vivência, estilo e necessidades. A autora não se responsabiliza pelo uso deste texto. Toda forma de viver o BDSM é válida desde que seja respeitada a consensualidade, sanidade e segurança dos envolvidos.

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Equina Nur
BDSM de iniciante

Égua-humana 100% brazuca que usa seus cascos também para escrever | equinanur@gmail.com