O conto a seguir foi resgatado do antigo site do SoMos, um grupo paulista de BDSM, fundado em 1992 pela Rainha Bárbara Reine, e que tinha o propósito de conectar praticantes, por meio de encontros socais (munchies) e workshop educativos. O texto está reproduzido na íntegra e você pode encontrar a postagem original aqui.
Para saber mais sobre a história do BDSM no Brasil: Desejo Secreto e a história do BDSM no Brasil, por Equina Nur
“E houve batalha no céu: Miguel e os seus anjos batalhavam contra o dragão, e batalhava o dragão e os seus anjos.” Apocalipse, 12:7.
Reza a lenda que foi o arcanjo Abdiel o primeiro a ser tentado por Lúcifer (Helen bem Shachar, no hebraico antigo) quando da sua revolta contra a criação. A história é sempre contada pelos vencedores…
Miguel (ou Michael) e Lúcifer eram, no entanto, inseparáveis até a revolta dos arcanjos. Os dois, os mais belos. Os dois, os mais fortes, reluzentes e poderosos dos arcanjos. Ambos mais antigos do que o próprio tempo. Natural, portanto, as súplicas do líder dos decaídos fosse dirigida, primeiro, ao grande amigo Miguel.
Lúcifer acenava com a liberdade, o fim da opressão do Pai. Mais que isso, Lúcifer acenava com os prazeres de uma carne que lhes fora negada. O Pai lhes fizera, em certo sentido, menos do que os homens.
Miguel rechaçou a oferta. Postando-se ao lado do Criador, comandou um exército de querubins e expulsou seu irmão do paraíso. A dor foi infinda, mas a fidelidade do arcanjo guerreiro era maior a Deus do que ao irmão cravejado de pedras preciosas e reluzentes.
Desde então, tempos imemoriais se passaram. Lúcifer, condenado a arder de um fogo que emerge-lhe das entranhas, recebeu o que queria e era negado a todos os arcanjos: o poder do falo.
Já Miguel, Abdiel, Gabriel e todos os vencedores permaneceram intocados, ostentando nas virilhas a pureza da castração, uma fronte límpida, lisa, incapaz e inepta para as tentações da carne.
A região do Mar Vermelho, no Oriente Médio, onde foi se esconder Lilith, a primeira mulher de Adão, é lar de todos os demônios que habitam a Terra. Para lá migram as almas perdidas, os lilins, as bestas e todas as criaturas que se insurgem ou se insurgiram um dia contra o Criador.
É a paragem preferida do portador da luz, do príncipe da luz. Uma espécie de colônia de férias quando excursiona pela Terra. Desta vez estava com sua amante favorita, Mazikeen, uma das primeiras filhas de Lilith.
Assim como a beleza dos arcanjos é insuportável a qualquer mortal, os horrores de Mazikeen também o são.
Sobre um corpo muito belo, bronzeado pelas lavas do inferno, sustenta-se uma cabeça descarnada, mas apenas do lado esquerdo. Assim, quem mirar Mazikeen pela direita, de perfil, verá apenas o belíssimo e tentador rosto da mais devassa das prostitutas. Mas se o observador olhar o lado esquerdo…
O lado esquerdo é descarnado. Os dentes, amarelos e cariados revelam-se nus sob o vazio. Um pouco acima, não carne, mas apenas nervos descapados entrecruzam-se até a região do cérebro, que se exibe pulsante e cinza, uma gosma amarela desprendendo-se das suas divisas. Pele não há, e o cabelo, apenas alguns fios rebeldes fugidios do lado direito. Grudam-se na gosma amarela.
A nudez sob a carne desce até a base do pescoço, revelando as últimas vértebras de uma coluna retorcida pela dor e por gozos os mais proibidos. Essa é Mazikeen, a amante favorita do mais belo dos arcanjos.
Naquele dia, a colônia de férias estava razoavelmente vazia de demônios e outras criaturas infernais. O mestre do mal aproveitou para desfrutar sua privacidade.
Caminhava nu sobre as dunas, as areias queimavam-lhe deliciosamente os pés. Presa à sua, a mão de Mazikeen, sua amante e escrava. Caminhando sempre ao lado direito do arcanjo, pois ele preferia sua face esquerda, Mazikeen gemia a dor das queimaduras da areia. Sabia que sua dor agradava ao grande príncipe.
Vez por outra contemplavam uma alma perdida, vagando em desespero pela imensidão do deserto. Atrás da alma, invisíveis a ela, uma horda de demônios sussurrava nos seus ouvidos os caminhos para a definitiva perdição. Uma cena bucólica. Foi quando Mazikeen apontou para o céu:
— Quê é aquilo?
Lúcifer olhou para cima. De fato, como que vindo do próprio Sol, uma criatura adornada por grandes asas brancas planava na direção do casal. Ainda que distante, a luz que emergia daquele corpo celestial revelava uma beleza divina. Pararam e esperaram que se aproximasse mais.
Ele já estava bastante próximo quando foi reconhecido pelo irmão, as poderosas asas lançando uma sobra sobre as areias do deserto. Lúcifer o reconheceu: era Miguel.
— Não posso crer!!! —bradou o anjo negro. —A que devemos tão inusitada visita, tão imensa honra?!!
— Vim conversar, respondeu Miguel, pousando diante do casal.
O paraíso é o lugar mais monótono do Universo. Anjos assexuados pairam em eterna contemplação da inatingível luz. Enganam-se quando pensam a ela pertencer. Assim o fosse, não a veriam.
Zelam seus habitantes pelos homens, e desses só recebem ingratidão, blasfêmias e traições. Ainda por cima, têm os anjos e arcanjos, querubins e serafins, de contemplar a contorção erótica de uma carne que lhe fora negada.
A assexualidade, a limpidez de virilhas desfaladas, gera na alma angelical inegável frustração. O perfeito bem é terrivelmente frustrante. Miguel, justo ele, o capitão das divisas celestes, foi o primeiro a se arrepender de ter ajudado ao Criador. Não fora por ele, possivelmente seu amado irmão houvesse vencido a batalha.
Diante do grande arcanjo negro, Miguel redimiu-se em lágrimas:
— Estou arrependido, meu irmão. Arrependo-me por lhe haver traído.
Lúcifer permaneceu em silêncio, o mais formidável silêncio que somente ele era capaz de emitir. Tomou a mão de Miguel e puxou-o numa caminhada pelas areias do deserto.
As dunas estavam lisas, recém aplainadas por uma tempestade de areia. O calor insuportável, fatal a qualquer homem, era por vezes amenizado pelas sombras das asas dos irmãos arcanjos. Um pouco atrás, Mazikeen os seguia em silêncio, a cabeça baixa de uma escrava.
Ao contrário de Lúcifer, Miguel não tinha o corpo recoberto por pedras preciosas. O orgulho jamais crescera em seu peito como antes crescera no irmão. A beleza de Miguel se revelava nos seus olhos, azuis como se fatias do céu fossem. A pele, tão branca quanto branca pode ser qualquer coisa. Um branco perfeito. E os cabelos, fartos cachos dourados escorrendo pela poderosa tez de um infante guerreiro. Ele ainda era puro, e o grande demônio não deixou de perceber essa pureza.
Sem rodeios, Lúcifer perguntou:
— Pois bem, irmão. O que você quer? Pecar?
Em última análise, era exatamente isso o que queria Miguel: pecar. Mais, queria receber o Poder, o Poder do falo. Miguel queria da carne que lhe fora sonegada.
Como não conseguisse dizer nada, bem Shachar tomou a iniciativa e chamou Mazikeen, apresentando-a.
— Esta é Mazikeen, a carne. É isso o que você quer?
Miguel nada respondeu, pois não sabia mentir. Voltou-se para o antigo irmão: reconheceu-lhe a beleza infinda, a única que lhe fazia frente. Ao seu lado, Mazikeen sorria-lhe o tentador riso da morte. Oferecia-se.
Como o arcanjo nada fizesse, Lúcifer se afastou dizendo:
— Pois se é isso o que quer, toma. É sua, amado irmão.
Miguel não se movia. Não fugia de volta para o céu nem se deitava esplêndido sobre a mulher. Estava paralisado. Foi ela quem o deitou sobre as areias escaldantes, encaixando seu corpo sobre o do anjo.
— Ainda não, querida — interrompeu Lúcifer. — Algumas providências preliminares ainda devem ser tomadas.
E assim dizendo, ergueu um pouco o corpo da mulher, mantendo-a sentada sobre o nada da Miguel. Com a unha afiada e reluzente, rasgou nos seus seios grandes feridas, de onde brotou um sangue vermelho como o dos rios do inferno.
— Agora sim! Pode tomá-la, irmão. Essa sim é a carne que deve provar. A carne imersa em sangue.
Mazikeen debruçou-se novamente sobre Miguel, o sangue violando a brancura celestial do arcanjo.
Começou a roçar seu corpo sobre o dele. O cheiro de sexo e sangue empestava todo o deserto. Mordeu-o, arrancando-lhe um pedaço do peito. Mas a carne do arcanjo ainda era branca e pura. Arranhou-o por todo o corpo, nenhuma única gota de sangue. Miguel parecia feito de nuvens. O arcanjo nefelibático.
Foi quando a prostituta chegou-lhe na virilha. Com a unha afiada, rasgou um longo corte longitudinal na pureza de Miguel, abrindo-lhe uma talha, uma fenda de onde haveria de emergir, na forma de pecado, o grande falo angelical.
O sangue de Mazikeen tingia de vermelho as brancas faces do arcanjo. Cavalgava-o, invocava o pecado aos quatro ventos. Uivava como só pode uivar a mais devassa das prostitutas. Mirou-lhe os olhos. Faltava pouco.
Com a mesma unha que usara para abrir a fenda na virilha de Miguel, talhou um profundo corte no canto encarnado da sua boca, deixando escorrer a derradeira gota de sangue. Debruçou-se bem próxima a ele, o sangue pendendo da sua boca para a boca do belíssimo arcanjo.
— Toma, bebe, te entrega…
A gota vermelha finalmente pingou, molhando os lábios de Miguel. Ele não se mexia, apenas olhava em martírio para os céus, como que invocando uma força maior que a sua. Lágrimas rolavam dos seus olhos, os lábios, ainda fechados, tremiam indecisos.
— Vai, abre teus lábios, minha criança. Bebe meu sangue, sangue menstrual da puta do inferno!
Os lábios tremiam com mais força. Quase se abriam. Num último gesto, mirou o irmão que a tudo observava a alguns metros de distância. Suas asas, de Miguel, oscilavam as últimas forças, indecisas e sucumbentes. Mirou os olhos negros da meretriz, seus lábios se entreabriram e o sangue escorreu para dentro da sua boca. Miguel caíra.
Não resistira ao sangue da prostituta, a filha de Lilith, o poder supremo da sedução. Não resistira ao princípio ativo feminino, ao absoluto do desejo, ao súcubo último.
Entre as suas pernas, emergindo do corte que lhe fora talhado na virilha, um poderoso falo adentrou a podridão de Mazikeen. Como numa explosão vulcânica, o poder da carne fez-se ato no corpo decaído do grande guerreiro. O céu, a Terra e o inferno tremeram no orgasmo do arcanjo.
E Miguel, vencido, tombou para o lado sua cabeça dourada. Mirava-lhe o irmão mais velho. E Miguel viu que era bom. E que a carne era boa. Miguel chorou.
Autor: Gog