Os limites de um relacionamento SM, ou o Senhor Benson já não mora mais aqui

Margot
BDSM.Ed
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18 min readSep 14, 2020

Patrick Califia (nascido em Pat Califia) é um escritor americano de ensaios de não-ficção sobre sexualidade e ficção erótica e poesia. Califia é um homem trans bissexual e, antes da transição, ele se identificava como lésbica. Enquanto mulher lésbica, escreveu por muitos anos uma coluna de conselhos sobre sexo para a revista Drummer. Seus escritos exploram a sexualidade e a identidade de gênero e incluem o erotismo lésbico e trabalhos sobre a subcultura BDSM. Califia cofundou a Samois, uma organização lésbica-feminista de BDSM com sede em São Francisco (1978–1983) e mudou seu foco para a experiência lésbica de BDSM. O Coletivo Samois produziu, com as contribuições de Califia, o livro Coming to Power, publicado pela Alyson Publications. Coming To Power, de acordo com a editora-chefe Heather Findlay da revista lésbica Girlfriends, foi “um dos livros lésbicos mais transformadores, [predizendo] o fim de um certo puritanismo que havia dominado a comunidade. Foi a primeira defesa articulada de lésbicas praticantes de SM.”

O romance Senhor Benson de John Preston foi o primeiro best-seller entre os leathermen modernos. Em meados dos anos 70, quando estava sendo publicado na revista Drummer, eu literalmente vi leathermen nas bancas, esperando em filas, para comprarem a última edição. Essa incrível popularidade foi indício do quão comum e poderosa é a fantasia que o livro apresenta.

Não há dúvida de que os dois personagens principais, Aristóteles Benson e Jamie, são respectivamente “um verdadeiro Top” e “um verdadeiro bottom”. Aristóteles Benson não é apenas sexualmente dominante e sádico: ele é rico, educado e mais velho do que Jamie. Suas conexões com outros Tops, com o submundo urbano e com a polícia permitem que ele crie uma rede de controle e vigilância ocultos ao redor de seu escravo. Ele espera total obediência de Jamie e não vê necessidade de lhe dar explicações ou aceitar desculpas. O poder do Sr. Benson como mestre advém perfeitamente do seu status no mundo real. Jamie é mais jovem, maleável, não tem objetivos reais e vive (sem o benefício de um emprego ou direitos de usar os móveis) no mundo do Sr. Benson. Ele não possui nada e não tem direitos. Ele também não tem responsabilidades além de fornecer serviços sexuais e domésticos. Quando ele foge do controle do Sr. Benson, sua sobrevivência está ameaçada. Sua vida está literalmente nas mãos de seu mestre.

Fascículo da novela “Mr. Benson” em uma edição da revista Drummer

Eu respeito dominantes e submissos que tentam viver seus papéis como um estilo de vida ao invés de sessão a sessão. Não pretendo menosprezar o livro, ou seu autor, criticando as maneiras que as pessoas o usam como paradigma para suas relações SM. Mas estou curiosa para saber por que tão poucos de nós chegamos perto de viver essa fantasia. O diálogo dentro de nossa comunidade sobre como SM funciona no dia-a-dia e como podemos formar identidades saudáveis como pervertidos radicais tem que crescer além das informações elementares que oferecemos aos estranhos que ainda estão tendo dificuldade em distinguir estupro e um spanking erótico.

É um clichê na comunidade SM que a quantidade de bottoms supera a quantidade de Tops, numa proporção de dez para um. Você pode discutir sobre a proporção exata ou tentar igualar os números alegando que os bottoms de verdade são tão raros quanto Tops, mas a maioria dos leathermen, dykes, bissexuais e heterossexuais fetichistas, provavelmente, concordariam que há uma escassez de Tops.

O processo de negociação que ocorre antes de uma troca de poder em uma sessão SM deve garantir consentimento e gratificação igual para ambos parceiros. Se isso for verdade, por que tantos mais sadomasoquistas preferem se submeter? Isso certamente parece implicar que um papel é potencialmente mais recompensador do que o outro. Se alguns de nós não estão obtendo o que desejam (o que parece garantido em uma subcultura em que os bottoms excedem em número os Tops), talvez precisemos fazer algumas mudanças.

Como os Tops e os bottoms se veem? SM é realmente sobre sensualidade e mutualidade? Estamos sendo honestos sobre o que queremos um do outro? Estamos sendo realistas ou justos?

Uma das coisas que os Tops ao socializar é reclamar dos bottoms. Muito disso é desabafo, e muitas vezes com tom afetuoso, então não pode ser levado muito a sério. Mas já ouvi várias vezes algumas reclamações que provavelmente não deveriam ser descartadas.

Ainda não conheci um Top que não sinta que é frequentemente despersonalizado e objetificado pelas pessoas que os cruzam. Esta é uma sensação estranha: você sabe que alguém te deseja muito, mas não tem certeza se eles sabem quem você é. Muitas vezes sou abordado por bottoms que querem uma sessão, mas eles não têm a menor ideia de qual seja a minha sessão. Quando tento dizer a eles (suavemente, no início) que sou basicamente uma sádica e não tenho interesse em adoração ao corpo, dominação, empregadas domésticas ou escravidão, a menos que essas atividades possam ser combinadas com dor física, eles geralmente optam por não acreditar em mim. Não sou vista como responsável por comunicar minhas preferências, mas sim como se estivesse me contendo.

Parte disso é resultado de habilidades sociais deficientes. É difícil encontrar parceiros compatíveis, então muitos de nós não praticamos nossas técnicas de flerte e negociação o suficiente para torná-las eficazes. Por causa dessa falta de experiência, alguns praticantes não sabem que existem diferentes tipos de Tops e bottoms — ou não se importam porque estão desesperados. Algumas formas de masoquismo e fetichismo são, na verdade, formas muito sofisticadas e complexas de masturbação. Embora a fantasia da presença de um parceiro possa ser necessária para tornar a situação imaginada excitante, aquele dominante não tem necessidades ou sentimentos independentes, assim como um salto alto de dezoito centímetros ou uma capa de chuva transparente de plástico.

O SM autoerótico não é inerentemente ruim, imaturo ou opressivo. No entanto, é muito mais fácil realizar essas fantasias se masturbando ou contratando um profissional do que persuadindo outra pessoa a cooperar filantropicamente. Não são apenas os bottoms que tratam seus parceiros em potenciais como coisas. Os bottoms são ainda mais propensos a serem vistos como genéricos, intercambiáveis e substituíveis do que Tops. Atrevo-me a dizer que seria saudável para Tops aprenderem um pouco mais de respeito e humildade? Normalmente, um Top com uma boa reputação a adquiriu ao estabelecer um relacionamento contínuo e bem-sucedido com um bottom bastante respeitado e experiente. Mas os Tops raramente reconhecem isso. Já ouvi muitas vezes bottoms dizerem que sua inteligência ou competência são menosprezadas pelos Tops e que suas opiniões são desconsideradas. Bottoms muitas vezes sentem que se espera que eles façam muito além das suas partes e que deem aos Tops o crédito.

Por que, então, tantos de nós preferimos ser bottoms em vez de Tops? Em parte, eu suspeito que seja muito mais fácil se assumir como bottom. Você não precisa fazer nada para ser um bottom.

Ninguém irá desafiá-lo se você disser às pessoas que é isso que você é. Você pode ter zero habilidade, zero experiência e zero energia e ainda ser um bottom confiável. (Você provavelmente também se sentirá muito solitário, porque os bons bottoms precisam se dedicar para isso.) Um bottom que se assume como switch, muitas vezes, é ridicularizado ou desconsiderado. Se eles persistirem e provarem que podem ser um bom Top, podem ficar presos nessa função. As pessoas param de pensar neles como submissos disponíveis. Nossa comunidade não tenta conscientemente tornar mais fácil para os novatos aprenderem a ser bons Tops. Não estou falando sobre aprender uma técnica física segura, estou falando sobre aprender como estruturar uma sessão de forma que seja segura e satisfatória para o Top.

Quando discutimos segurança, consentimento e limites, nos concentramos quase que exclusivamente nas circunstâncias do bottom. Quase todas as informações técnicas publicadas sobre como praticar com segurança têm como objetivo proteger o bottom de lesões físicas ou traumas emocionais. Pouca atenção é dada às necessidades equivalentes do Top. Quando foi a última vez que você leu algo sobre como chicotear alguém sem machucar as costas? Todo bottom novato devidamente socializado começa sua primeira sessão com uma safeword devidamente memorizada. Quantos Tops iniciantes sequer pensam em se dar uma safeword? Esperamos que cada bottom tenha limites. Mas o Top que tem limites, em algum momento, será acusado de não ser “um Top de verdade”. O Sr. Benson nunca precisou pedir um tempo. Nunca saberemos quantas lesões relacionadas ao sexo são causadas por Tops que excederam sua competência, os limites de seu equipamento, ou quebraram regras básicas de segurança porque não queriam parecer covardes diante de um bottom insistente. Dizemos aos Tops novatos que eles devem deixar os bottom querendo mais. É melhor se controlar do que se sentir esgotado e sobrecarregado no dia seguinte. Não deixamos claro que isso é para o bem-estar do Top, tanto quanto para o do bottom.

Um bottom vai para uma sessão esperando experimentar uma combinação de sensações físicas, estimulação psicológica e emocional e na expectativa de que tudo isso resultará em um sentimento de ser purificado, transformado e curado. Essa experiência transcendental, em algumas ocasiões, é chamada de “orgasmo SM”. Um bom bottom tem a mente aberta e uma atitude de confiança, é flexível e responsável o suficiente para cooperar e aprimorar os melhores esforços do Top. Quando existe uma forte conexão entre Top e bottom, o Top passa por uma experiência extática, que é parcialmente composta de uma versão vicária do êxtase do bottom, e é, em parte, a experiência independente do Top. É assim que bottoms satisfazem Tops, e isso confunde as pessoas que presumem que todo sexo deve ser genital.

Mas, geralmente, esse êxtase não é o suficiente. Tanto bottoms quanto Tops têm órgãos genitais. Pouquíssimas pessoas ficariam felizes se suas sessões não incluísse um orgasmo baunilha. No entanto, muitas sessões (especialmente as públicas) não são genitais. Parece um pouco estranho assistir a uma grande reunião de pervertidos e não testemunhar quase nenhuma foda. Por que isso acontece com tanta frequência?

A maioria das play parties exigem sexo seguro. Suspeito que muitos de nós dizem coisas boas sobre sexo seguro, mas não o praticam. Fazemos o teste de HIV e, se der negativo, não se preocupam em tomar precauções para que assim continue. Alguns de nós acabamos optando por não fazer sexo em público em vez de praticar sexo seguro com camisinha.

Muitos de nós estamos, compreensivelmente, relutantes em permitir que outras pessoas nos vejam vulneráveis. O chamado sexo baunilha pode realmente revelar mais sobre você do que sua experiência técnica com os exóticos jogos de SM. É interessante que um grupo de pessoas que gosta tanto de desafiar tabus eróticos pareça ser incapaz de romper essa barreira básica e eliminar a vergonha de se estar nu e de ser tocado.

Se você quer deixar alguém em êxtase machucando-o sensualmente, o sexo genital, às vezes, pode tornar isso mais difícil. Uma vez que alguém começa a produzir endorfinas e começa a sentir dor, a estimulação genital pode distraí-los e desenergizá-los. Claro que também existem masoquistas que necessitam de excitação sexual antes da dor para terem um desempenho máximo.

Mas há algo mais acontecendo sobre o qual ninguém realmente quer falar. Os Tops, muitas vezes, acabam praticando com um determinado bottom quando são atraídos por apenas algumas qualidades específicas que eles possuem — por exemplo, seu limiar de dor, sua habilidade para receber fisting, ou sua vontade de cozinhar uma refeição gourmet de sete pratos e servi-la. Em uma situação em que os Tops estão em menor número e escassos, há muita pressão para praticarem sempre que seus interesses se sobrepõem aos de algum bottom. Este conjunto compartilhado de fetiches pode ser o suficiente para criar uma sessão muito legal, mas não inclui necessariamente atração sexual.

Isso é, certamente, percebido como uma espécie de rejeição. É muito difícil fazer uma sessão excitante e depois ter que gozar sozinho, ou encontrar alguma outra pessoa, que não o Top, que te satisfaça dessa maneira. Mas a única outra opção é o Top se recusar a fazer a sessão, ou ele se contentar em ser usado como um dildo humano. Isso te soa dominante?

É especialmente irritante esperar que você proporcione um orgasmo genital para cada uma das pessoas que você domina, quando a expectativa da comunidade parece ser de que os “Tops de verdade” não precisam gozar.

Por mais excitante que seja sentir empatia com a excitação do bottom, e por mais maravilhoso que seja se sentir poderoso e no controle, grande parte da sexualidade do Top permanece voyeurística. O tempo que o Top dedica à preparação e execução da sessão está concentrado em garantir que o bottom chegue onde ele ou ela deseja. O tempo que o bottom dedica para garantir o sucesso da sessão é focado em entrar em um estado mental e físico que tornará a sessão possível. Mesmo no final de uma sessão muito boa, muitas vezes um Top fica com a sensação de estar negligenciado e frustrado.

Bottoms já me disseram que, se eu fosse um homem, isso não seria um problema.

Nessa afirmação, há tantas suposições falsas sobre a sexualidade feminina, sobre mulheres masculinas e sobre as necessidades sexuais dos homens, que é um verdadeiro desafio desvendar algumas delas. A sexualidade masculina não pode ser reduzida a endurecer e meter. Os homens, muitas vezes, se ressentem de ter seus paus usados por parceiras que não prestam atenção ao resto de seus corpos, mas geralmente não estão dispostos a trocar seu privilégio masculino por mais prazer. Boquetes são populares, em parte, porque permitem que um homem não tenha seu pau apenas tocado — mas que façam amor com ele — sem reconhecer que está sendo um parceiro passivo em um ato sexual.

Eu realmente não quero tomar esteroides e ter meus peitos cortados para que eu possa ser reconhecida como um verdadeiro Top. Não tenho dúvidas de que a redesignação de sexo deveria estar disponível para os transexuais. (E todo o processo deve ser clinicamente mais seguro, mais eficaz e menos caro.) Mas eu sou uma mulher, e se alguém me adora, é melhor não me fazer sentir que meu corpo está errado, desagradável, inconveniente ou inferior. Eu amo jogos de gênero. Quando eu fodo alguém com um strap-on, não ejaculo, mas gozo. Às vezes, é o tipo de orgasmo que é suficiente para me fazer sentir satisfeita e com sono. Às vezes não é. Se eu fosse homem, a única parte desse cenário que poderia mudar é a ejaculação.

Não estou dizendo que os bottoms conspiram para frustrar os Tops. Acho que a maioria dos bottoms quer que seus opostos fiquem felizes e satisfeitos. Mas os bottoms precisam perceber que muito poucos Tops estão satisfeitos e prontos para encerrar a sessão só porque o bottom conseguiu o que queria. Existem algumas soluções para este problema, mas todas elas exigem que Tops e bottoms parem de fingir que os dominantes gozam quando eles chicoteiam alguém, ou pisam em seus corpos indefesos e inclinados.

Robert Pruzan, in Leatherfolk (p. 239)

Uma solução possível é o bottom se recompor e encontrar a energia para dar prazer ao Top de uma forma que o Top considere tão transformador quanto a cena que dera ao bottom. Na minha experiência, muito poucos bottoms fazem isso. Não cabe a mim dizer se é por falta de habilidade ou motivação. Eu gostaria de pensar que, como comunidade e como indivíduos conscientes e atentos, temos o poder de nos reunir e mudar nossos roteiros. O “serviço sexual” que a maioria dos bottoms está preparada para oferecer Tops é roteirizado como uma continuação da cena. É sobre o bottom afundar mais profundamente — não está centrado no prazer do Top, mas no prazer do bottom em ser usado.

Os Tops precisam ser mais assertivos ao pedir o que querem e parar de agir como um bando de codependentes vitimizados, reféns de bottoms gananciosos. Eles precisam nutrir e ensinar bottoms que estão dispostos a assumirem a posição de switch em vez de pisar em seus esforços experimentais e bem-intencionados. Os Tops ganham muito poder social em troca de fingir que não precisam de SM ou sexo tanto quanto os bottoms. Mas quão elevado e grandioso você pode ser se a única maneira segura de gozar é se masturbando? Quão poderoso e inspirador você pode ser se tem tanto medo de si mesmo que não consegue contar a outras pessoas nenhum de seus segredos libidinosos?

É verdade que os bottoms, às vezes, estabelecem regras muito estranhas sobre quais tipos de gratificação sexual são apropriados para os Tops desejarem ou experimentarem. Dominantes que querem ser conhecidos como verdadeiros Tops devem se limitar aos atos que são aceitáveis para homens heterossexuais baunilha, ou seja, você pode ganhar um boquete ou foder alguém. Uma vez conheci um Top gay masculino que fazia uma bela e elaborada sessão de bondage. Quando se espalhou que ele gostava de chupar os homens que havia amarrado, sua reputação foi arruinada. Seu telefone parou de tocar. Imagine o que teria acontecido com ele se gostasse de ser penetrado.

Espero que isso não vá arruinar o SM para todos, mas seria eu a única Top no mundo que acha impossível manter uma personalidade dominante enquanto estou gozando? Por que a pessoa responsável por conhecer as fantasias do bottom e torná-las realidade deveria ser estigmatizada por ter fantasias próprias? Um bottom sábio que deseja manter um relacionamento contínuo com um Top aprende a fornecer catarse para os desejos do Top, ou dá apoio para que o Top a encontre em outro lugar.

Um Top frustrado, que não encontra uma saída socialmente aceitável para seus desejos, pode assumir cada vez mais controle sobre o bottom, tentando obter gratificação ao se tornar ainda mais dominante ou ainda sádico. Um Top que não reconhece suas próprias necessidades pode experimentar uma confusão de limites, que torna difícil distinguir os limites de início e fim de uma sessão. Isso pode evoluir para agressão, ou até mesmo abusos, e raramente dará ao Top o tipo de catarse que ele ou ela está procurando. Um Top sexualmente frustrado também pode simplesmente se reprimir. O ressentimento é o principal motivo pelo qual o calor sexual abandona os relacionamentos.

Mesmo que seu bottom queira realmente te dominar, às vezes pode ser impossível se submeter a alguém que você condicionou a te obedecer. Um Top que deseja algum equilíbrio em sua vida, que deseja se relacionar sexualmente com outra pessoa que entende suas necessidades e não as rejeita, pode procurar outro Top e bottom para eles. (Por que você acha que o Sr. Benson e os outros homens de alto escalão formaram esse clube em primeiro lugar? Aposto que eles não estavam se submetendo uns aos outros em todas as reuniões!)

Esta é a opção que prefiro, e é uma tarefa perigosa. Aqueles de nós que acreditam em Tops e bottoms “reais” (ou seja, estilo de vida, permanente) não conseguem conceber um Top que se submete. Tal pessoa não seria um Top de verdade. Simplesmente negociar para fazer uma cena em um papel que não está acostumado a assumir é muito difícil. Se você adicionar a suposição de que se submeter por uma noite significa que você precisa ou deve mudar sua configuração mental para sempre, isso acaba com a alegria da sua noite.

Nossa comunidade está estruturada de forma competitiva. Uma das maneiras pelas quais os Tops ganham status é recusando-se a se submeter e dominando outros Tops. É uma comunidade pequena e com muita pouca privacidade. Se dois Tops tomam uma cerveja juntos, surgem rumores sobre qual deles é “realmente” um bottom. O Top que deseja tirar férias não deveria ter que tolerar ser notícia de primeira página. Os praticantes dominantes precisam aprender a blindar e proteger a confidencialidade uns dos outros. Já dominei Tops o suficiente para saber que não há muitos de nós que podem se dar ao luxo de atirar pedras nesta casa de vidro em particular.

Eu gostaria de ver uma comunidade na qual Tops pudessem ganhar status tendo a coragem de se arriscar e receber um pouco do que eles distribuem. Como alguém que não tem ideia da sensação de ser fisicamente amarrado, imobilizado ou machucado pode saber o valor do que o bottom está lhe oferecendo, ou até mesmo calcular a dose certa de uma punição?

Graças ao Movimento Feminista, não acreditamos mais que a biologia é o nosso destino. Mas, às vezes, me pergunto se não transferimos muitos de nossos antigos padrões de gênero para a dinâmica de Top/bottom. Às vezes esquecemos que assumimos papéis SM para gratificar nossas fantasias. Ainda presumimos que ser penetrado é um ato submisso e meter/foder é dominante. Ainda se presume que o prazer rebaixa e tira os direitos das mulheres. Isso ainda me soa muito parecido com os valores cristãos. Fizemos uma grande melhoria nos costumes heterossexistas ao insistir que o bottom pode ser um homem ou uma mulher, tem controle, tem o direito de consentir ou recusar, e deve sempre gozar. Mas acho que devemos desafiar os próprios significados que atribuímos a todos os atos sexuais. Este é o potencial verdadeiramente radical de SM. Ficamos assustados com a ideia de ter tanta liberdade?

Talvez um outro modelo dos anos 60, diferente do modelo do Sr. Benson, possa ser útil para a comunidade SM de hoje. Havia muita sobreposição entre as práticas sexuais e fetiches da subcultura fisting, existente antes da epidemia de AIDS e a cena Leather dos gays. No entanto, era comum que gays kinkies se identificassem mais como membros ou adeptos de um grupo do que do outro. Infelizmente, as formas sociais Leather sobreviveram e floresceram, enquanto a iconografia, os rituais e a etiqueta da cultura do fisting foram quase eliminadas. Sem uma boa razão, os praticantes mais jovens tendem a culpar os fisters pela AIDS, como se todo mundo não estivesse fazendo sexo sem segurança na época. Fisting, atualmente, tem uma má reputação na parte da comunidade que não usa drogas ou álcool, uma vez que muitas pessoas que praticavam handballing também usavam bastante drogas. Ao contrário do que dizem os Centros de Controle de Doenças, fisting não é a causa da AIDS, e você pode fazer isso sem alterar riscos a sua integridade física. Uma das razões pelas quais o fisting era tão popular entre os homens gays era que ele oferecia uma solução para alguns dos becos sem saída que são inerentes ao estilo dos anos 50 — os papéis rígidos do SM mais tradicional.

Entrei no SM saindo com gays e uma mulher bissexual, Cynthia Slater, que festejava em um clube de fisting em São Francisco chamado Catacombs. Na comunidade do handballing, era uma crença que “um homem que diz que não gosta de ser fodido não vai me foder com seu punho”. Nas festas do Catacombs, um novato que insistisse que era exclusivamente Top, corria o risco de ser forçado, muitas vezes sem a devida atenção à negociação e ao consentimento. Os exclusivamente Tops eram considerados frágeis e pretensiosos; exclusivamente bottoms eram considerados sexualmente chatos e gananciosos.

O ícone sexual do fister era um homem suficientemente mau para infligir e forte o suficiente para aguentar. Ser um bottom não diminui o status de alguém como Top (a menos que você tenha passado a vida inteira em uma tipoia com as pernas para cima). Em vez disso, tornou-se um novo significante para a potência sexual e masculinidade. Supunha-se que os bons Tops mereciam seu próprio tempo no bottom, e planejar sessões para homens que geralmente eram Tops era algo que a comunidade se orgulhava bastante. Isso era visto como algo bom, que você fazia para alguém que era um homem desejado, não uma tentativa de conquistá-lo, humilhá-lo ou diminuí-lo. Os Tops que colocaram a bunda na tipoia eram parabenizados, não desencorajados.

Fisting também era mais sensorial e mais psicologicamente orientado do que presenciei do SM em público. Muitas vezes ouvi praticantes de handballing dizerem: “Você tem que entrar na cabeça de alguém antes de entrar no cu”. Fisters eram adeptos de combinar intenso prazer físico com estimulação estressante. Eles estavam sempre procurando novas maneiras de se divertir. Eles tinham imensa curiosidade sexual e uma atitude muito tolerante em relação à nudez, diversidade racial, diferentes tipos de corpo e pontos eróticos de outras pessoas. Por definição, não era uma subcultura rígida.

A comunidade SM tende a ser polarizada. As pessoas se identificam como Tops/Sádicos/Dominantes/Mestres ou bottom/masoquistas/submissos/escravos. Podemos nos beneficiar em nos definirmos como sadomasoquistas primeiramente e, em segundo lugar, nos identificarmos com a escolha ou preferência do papel. Também precisamos dar mais reconhecimento aos Switchers em nossa comunidade. No momento, eles estão em uma espécie de limbo, como bissexuais ou transexuais pré-operatórios. Todo mundo sabe que eles estão lá, mas ninguém quer possuí-los ou dizer que os pertencem. Switchers são alguns dos membros mais interessantes e desafiadores de nossa comunidade. Na minha experiência, eles também tendem a ser mais honestos. Os recém-chegados precisam saber que não precisam decidir logo de cara de qual lado do espectro estão.

Por que presumimos que você precisa de um Top e um bottom para fazer uma cena ou para uma relação SM acontecer? Bottoms podem se unir para criar rituais conjuntos nos quais ambos recebem o tipo de estímulo de que gostam. Em vez de se relacionar com os padrões de um Top ou obedecer às ordens do dominante, a habilidade do outro bottom se torna um desafio que você deve se esforçar para enfrentar. Masoquismo solo — ou sadismo solo? — é uma opção que não discutimos com frequência suficiente. Alguns êxtases de dor intensa ou formas de modificação corporal podem ser realizados de maneiras muito mais seguras se você as fizer em si mesmo. Sempre haverá uma lacuna entre sua resposta a algo que é arriscado e a capacidade do Top de controlar o que está sendo feito com você. Essa lacuna é drasticamente reduzida quando você monitora suas próprias respostas e faz coisas para si mesmo. Nesse caso, você se motiva por um impulso atender ou superar seu próprio desempenho anterior, ou o estado espiritual e físico que você deseja alcançar se torna o seu incentivo, e não a gratificação do Top.

A experiência e as necessidades do bottom, provavelmente, sempre serão utilizados como o modelo de SM são, seguro e consensual. É o foco no desejo do bottom que distingue SM da agressão. Um bom Top tem que ouvir a voz do bottom. Paradoxalmente, se pudermos honrar e validar mais os bottoms, bem como começar a honrar o lado bottom que existe nos Tops, o papel do Top pode se tornar muito mais atraente e menos intimidante. Tops podem se tornar mais abundantes. A cena pode ser mais confusa, mais ambígua, e isso faz com que tenhamos que nos comunicar mais e melhor um com os outros. Pode ser mais difícil identificar se estávamos fazendo as coisas da maneira certa. Meu Deus, podemos até ter que abandonar completamente nossas noções de pureza e do que é correto! Mas todos nós nos divertiríamos mais. E isso seria uma coisa boa.

CALIFIA, Pat. The Limits of the S/M Relationship, or Mr Benson Doesn’t Live Here Anymore. In: THOMPSON, Mark (ed.). Leatherfolk: Radical Sex, People, Politics, and Practice. 3. ed. Los Angeles: Daedalus Publishing, 2004. [Traduzido por Margot]

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