O que interessa a Marcio Abreu?

João Santos
Beagá Cool
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5 min readApr 26, 2016

Com a última apresentação de “Projeto Brasil”, domingo passado, no Sesc Palladium, Marcio Abreu se despediu — fisicamente, pelo menos por enquanto — de Belo Horizonte.

O dramaturgo e diretor, nascido no Rio de Janeiro mas tendo em Curitiba o epicentro de sua criação, já tinha uma relação importante com BH, por onde passaram muitos dos espetáculos de sua Companhia Brasileira de Teatro. Mas foram nos últimos meses que a estética e ética de Abreu alcançaram uma dimensão fundamental no teatro da cidade.

A respeito desta nova presença e importância, nada poderia ser mais marcante — e simbólico — do que o trabalho que Marcio Abreu desenvolveu ao lado do Grupo Galpão. Pilar da cena teatral mineira, a companhia de 34 anos novamente se arriscou, com coragem, em uma nova experiência e, com Abreu, atravessou o processo que deu origem ao espetáculo “Nós”, um trabalho ousado, incrivelmente atual e de forte teor político.

Foto: Gustavo Pessoa

Para além do trabalho com o Galpão, que certamente ainda terá fortes reverberações, nas últimas semanas Marcio Abreu — e a Cia. Brasileira — trouxeram a BH dois espetáculos: “Vida” (2010, já anteriormente apresentado no FIT daquele mesmo ano) e o recente “Projeto Brasil” (2015, pela primeira vez em BH) e reuniram, em uma semana de trabalho, integrantes da classe artística mineira para a oficina de dramaturgia encabeçada por Márcio.

Mas do que é que vocês estão falando, gente?

Estamos falando de nós. É disso que trata o novo trabalho do Grupo Galpão. Um trabalho sobre eles, sobre eu e sobre você. Com um espelho apontado para a cara da plateia, “Nós” ao mesmo tempo tenciona os limites entre teatralidade, presença e performance no trabalho dos atores, e amarra a cena e os espectadores em um encontro efetivo, na comunhão de um acontecimento. Comendo a mesma comida, bebendo a mesma bebida e respirando o mesmo ar, o público presente poderá se reconhecer em Antonio Edson, Chico Pelúcio, Eduardo Moreira, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André e Teuda Bara, atores do coletivo já tão reconhecido em BH e em todo o Brasil, mas vistos agora de uma perspectiva que, de tão íntima, e verdadeira, os potencializa.

Foto: Guto Muniz

Se em “Nós” o Galpão finalmente atingiu o caráter contemporâneo que já demonstrava perseguir a algum tempo, muito se deve à forma com que o trabalho foi conduzido. Apesar de assinada por Abreu e Eduardo Moreira, a dramaturgia do trabalho foi construída de forma coletiva, e incorpora tanto proposições como aspectos da personalidade dos atores. Não é difícil identificar, em cena, a pessoalidade de Teuda, Toninho, Paulo André e, também, tensões reais de um coletivo que, em mais de três décadas de trabalho, tem que, obrigatoriamente, lidar com conflitos e divergências que convivem com sua cumplicidade artística.

Mas não é apenas a presença destes sete atores e atrizes, destas sete pessoas, que interessariam a Marcio Abreu. Em novembro do ano passado o público foi convidado para dentro da sede do Grupo Galpão, um endereço distinto mas na mesma rua Pitangui de seu Galpão Cine Horto, para uma série de demonstrações do que se tratava o trabalho construído até então. Já atravessado pelas pessoas lá presentes, o processo, sua abertura e diálogos travados também permearam “Nós”, de forma que poderá ser percebida por quem esteve lá ano passado e agora retornar ao espetáculo.
“Nós” é um espetáculo necessário para o momento em que vivemos. Um momento de julgamentos, muros e delações. Quando o homem perceberá que não se trata apenas de si? Precisamos, todos, da mesma coragem de Márcio Abreu e do Grupo Galpão para encararmos nosso lado sem luz. Só assim, talvez, poderemos acreditar em uma estrada clara.

Brasileira

Abreu não esteve sozinho durante o processo com o Grupo Galpão. Além de diversos parceiros em Belo Horizonte, vieram se juntar a equipe de “Nós”, especialmente, dois companheiros antigos de Márcio.

Nadja Naira não é apenas atriz da Companhia Brasileira. Uma artista de ampla sensibilidade, ela é confidente e ilumina diversos pontos no trabalho e linguagem desenvolvidos por Abreu. De fato, ela assina (ao lado de Rodrigo Marçal), a iluminação de “Nós”. Mas, na ficha técnica do espetáculo, ela também está presente como “Colaboradora Artística”. Presente, dentro do salão de ensaios, durante momentos importantes do desenvolvimento do trabalho, Nadja, tão intima daquelas propostas, talvez tenha sido, de certa forma, norteadora para os atores do Galpão.

Tanto a luz como a trilha e os efeitos sonoros de “Nós” tem importância dramatúrgica fundamental. Felipe Storino é a pessoa responsável pela estranheza sonora do espetáculo, que contribui de forma decisiva para diferentes atmosferas desenvolvidas na apresentação; sejam sombrias, sejam de tensão ou sejam, até mesmo, festivas.

Tanto Felipe quanto Nadja são colaboradores da Companhia Brasileira e puderam ser vistos no projeto OFF em Cena, através do qual o Sesc trouxe a Belo Horizonte “Vida” e “Projeto Brasil”. Nadja, na verdade, integra o núcleo central do coletivo, e entre várias funções desenvolvidas em diversos trabalhos, atua nos dois espetáculos agora apresentados. Felipe é músico/atuador em Projeto Brasil.

Sobre “Vida”, é bonito ver como todos os pontos da linguagem da Companhia e de Marcio Abreu já estavam ali apontados. O espetáculo, que parte de Leminski, acaba permeado, novamente, pela pessoalidade de seus artistas criadores e provocando essa tão valiosa transgressão entre processos de escrita e de leitura. O que diz “Vida”? Bem…o que você escutou?

Projeto Brasil

Sobre “Projeto Brasil”, que assisti três vezes: meu silêncio. Não sou capaz de formular aqui o impacto causado por esta montagem. Teatro. Se você não esteve no acontecimento, persiga-o!

Você teve uma ideia? Que pena.

Uma manhã. Duas tardes. Não costumam passar disso as oficinas de teatro promovidas em Belo Horizonte. O encontro de Márcio Abreu e dos integrantes da Companhia Brasileira com integrantes da cena teatral Belo Horizontina, ao contrário, durou quase uma semana e, sem dúvida, foi o que se propôs: um encontro. Efetivo, profundo e sincero.

Durante todo o trabalho, que coroou a presença do diretor na cidade, os participantes tiveram a oportunidade de vivenciar o trabalho de Marcio Abreu, exercitando o diálogo — e, sobretudo, a escuta — a devoção à palavra acima do conteúdo, e da forma indissociável da mensagem.

Foto: Gustavo Pessoa

Para Márcio Abreu não são seus desejos pessoais que interessam no teatro. Certamente não no teatro que ele próprio faz. Acaso, caos, aleatoriedade talvez pareçam resultados, e talvez até sejam mecanismos. Mas o que interessa a Marcio são as pessoas. De frente ou sobre o palco. Ou nos bastidores. Na rua…lá fora. Que sentidos, que experiências e acontecimentos elas podem viver juntas? O que poderão construir?

O teatro não poderá, jamais, ignorar o outro.

Nós — temporada de estreia do novo espetáculo do Grupo Galpão: de quinta a domingo, até dia 15 de maio, no Galpão Cine Horto. Mais informações, clique aqui.

Acompanhe também a Companhia Brasileira de Teatro.

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