Dúvidas que me tiram o sono

Mesmo quando eu preciso acordar cedo.

Beatriz Coragem
Beatriz escreve
Published in
4 min readDec 11, 2017

--

E se a água não tivesse acabado, a gente ainda teria contado aquela mentira deslavada para fugir e se beijar ali na cozinha suja? Eu me sinto tão fajuta toda vez que proponho numa espontaneidade falsa que a gente faça algo por impulso, sem pensar muito bem no resultado. Minhas perguntas são sempre ensaiadas, eu só sei o que dizer porque já treinei na minha cabeça, na frente do espelho, enquanto dirijo até o trabalho. Se eu pudesse me controlar, juro que o faria, mas eu perco noites de sono me perguntando:

E se eu gostasse de matemática e odiasse português? E se eu tivesse mudado de país, se eu tivesse viajado até a Holanda para nunca mais voltar? Talvez eu esquecesse de quem ficou deste lado do oceano, talvez eu demorasse dias para responder em meias-palavras uma mensagem sua.

E se o Felipe não tivesse namorada, ou se eu nunca tivesse cruzado com o Pedro aquele dia no bar? E se eu tivesse dito para ele com todas as letras que me apaixonei, sim, amor mesmo, daquele tipo que dá borboletas no estômago, que me deixa com os joelhos tremendo, as mãos suadas, o coração batendo tão forte que consigo senti-lo na garganta, consigo vê-lo pulsar no peito. Aquele amor clichê, que me tira o sono, que me dá dor de cabeça e me deixa toda atrapalhada, encarando o vazio em pleno horário comercial. E se eu passasse menos tempo pensando em quando você vem? Ou (ainda melhor) e se eu nunca duvidasse da sua chegada?

Se eu tivesse passado protetor solar antes de torrar por dias na praia lá em 2007, hoje as sardinhas que pintam meu ombro sequer existiriam. Eu poderia escrever com a mão direita e pintar minhas unhas de vermelho, mas não faço nem uma coisa, nem outra. Eu poderia nunca ter largado as aulas de natação. Ou talvez eu nem devesse ter entrado na faculdade. Poderia ter desistido do curso na metade, poderia ter estudado o que meus pais queriam. Talvez eu fosse advogada agora, vestida de terninho e scarpin.

É então que eu lembro que posso ser demitida amanhã, ou mês que vem. Se isso acontecer, nunca vou terminar de pagar aquelas parcelas todas da bolsa que eu comprei em setembro. E as dívidas hipotéticas vão se empilhando, uma em cima da outra, até eu me tocar que meu emprego ainda existe e as contas estão todas em dia. Mas, às vezes, pode ser que alguma coisa fora do meu controle aconteça. Talvez eu caia morta sozinha em casa algum dia desses. Talvez demorem dias para me encontrar. Talvez algum vizinho precise ligar para a polícia para reclamar do mau cheiro. Ou, então, pode ser que algum dia eu simplesmente abra os olhos e perceba que o trânsito, o trabalho, as minhas alergias todas já não fazem sentido e chegou a hora de partir. Se São Paulo de repente perder a graça, eu vou conseguir ir embora sem olhar para trás?

Antes eu conseguia ver alguma unidade na vida, nos dias que se passam e nas decisões que a gente toma. Eu mesma me sentia concreta, como as estruturas que mantêm em pé o prédio onde eu moro e a cidade que eu escolhi para viver. Sólida. Inteira. Enraizada nas minhas próprias concepções do que ser ou não ser. Eu conseguia enxergar tudo isso, provavelmente porque a gente só vê o que quer.

Mas hoje tudo me parece em frangalhos. Ao invés de me enxergar por inteiro, vejo pedaços. Átomos que formam moléculas, que formam células, que formam meus órgãos, que formam o meu corpo. Lembranças de gente que já se foi, traumas de momentos que se passaram, dores que não vão voltar, alegrias que nem sei se um dia vou sentir de novo. Cada trejeito, cada gíria, cada cicatriz — tudo que me faz parece exógeno.

Às vezes, assumo, roubei de propósito mesmo, por saber que aquela parte cabia melhor em mim. Mas, às vezes, enfiam-me coisas goela abaixo, contra a minha vontade. As perguntas nunca param de surgir e eu fico sem respostas. E se eu tivesse conhecido outras pessoas? E se eu tivesse nascido em outra família? E se tudo fosse diferente — eu seria mais feliz?

Eu ponderei todas as circunstâncias, analisei minuciosamente cada detalhe, cada hipótese, cada centímetro, cada coisinha fora do lugar (na pele, na mente, no coração). Ainda que nada fosse igual, eu perderia o sono pensando no que foi, no que é, no que será. Porque eu sei que esta é a parte de mim que não roubei de ninguém.

Se você gostou deste texto, ajude a divulgá-lo. Compartilhe, 👏 e comente! Para ler mais, clique aqui.

--

--