Fuga

Beatriz Coragem
Beatriz escreve
4 min readJan 8, 2019

--

Photo by Greg Rakozy on Unsplash

Conheci certa vez uma garota que gostava de saltar de uma realidade para outra. Espera aí, acho melhor eu reformular: não é muito bem que ela gostasse de estar sempre em movimento, Beatriz desejava fincar suas raízes em um pedaço de terra para vê-las crescer, mas não havia outra opção.

Como todo grande hábito, esse teve início cedo, nos primeiros anos da vida. Foi no jardim de infância que Beatriz entrou em seu primeiro conflito com outros dois colegas de turma. A menina, que não passava dos três anos, defendia com uma convicção inabalável o direito de uma tartaruga de andar livremente pelo gramado da escola. Os meninos insistiam em virá-la, com o casco para baixo e as pernas para cima. O simples prazer de ver um animal inferior lutar por sua sobrevivência. A discussão foi tão acalorada que a menina doce de cabelos loiros revelou, por alguns minutos, um pedaço de si que nem mesmo ela conseguia entender na época. Em um ímpeto furioso, Beatriz empurrou os dois garotos, derrubou-os na caixa de areia e atirou sua boneca contra eles. Ela ajudou a tartaruga a se recompor e voltou para a casa em prantos. Em poucos meses e após um encontro de pais e mestres, sua mãe a transferiu de colégio. Ela nunca mais soube da tartaruga.

A segunda escola durou mais tempo. Os amigos, não. Os anos da infância ficaram para trás e Beatriz percorreu seus dias com desdém pelas pessoas, pelos lugares, pelas regras que era obrigada a seguir. Ela flutuava entre círculos de semi-amigos, com distanciamento e certa arrogância. Sentia-se melhor que aquilo que a cercava. Sentia-se maior. No dia do seu baile de formatura do Ensino Médio, Beatriz tomou seu primeiro porre. Inebriada, ela rompeu a barreira silenciosa que a separava daquela realidade. Percebeu que nunca mais precisaria conviver com aquelas pessoas e, portanto, não tinha a necessidade de esconder o que pensava sobre elas. Com seu cinismo adolescente, afastou até os pouquíssimos colegas que ainda a estimavam. Nada importava, ela se matricularia na universidade em poucos meses. Uma nova cidade. Uma nova vida.

Um lugar onde ninguém a conhecia. Beatriz podia ser quem quisesse e escolheu ser ela mesma. Os anos de faculdade ensinaram literatura, filosofia e história da arte. Ensinaram também como fingir entendimento sobre política, qual era o seu limite para o álcool, como fazer um boquete. As pessoas continuavam a ser uma decepção. A certa altura, as aulas se tornaram tão enfadonhas que ela faltava sempre que podia. A sua mãe perguntou se não seria hora de consultar um psiquiatra, tomar antidepressivos. Beatriz ainda carregava em si a ideia de que sabia a resposta de todas as perguntas e disse: não, nunca. No dia em que pegou seu diploma, deu adeus ao campus e a todos que fizeram parte da sua vida naqueles quatro anos. Estava na hora de um novo início e ela era maior que tudo que a cercava.

Beatriz atravessou o oceano e se mudou de país. Distante de tudo que havia vivenciado, foi a primeira vez que sentiu-se à deriva. Ela estava sozinha há tanto tempo que a solidão chegou enfim e começou a doer. Em uma noite fria de outono, conheceu um homem doce. A maneira como palavras gentis saíam de sua boca grosseira a fez acreditar que nem todas as pessoas seriam decepção. “Nenhum homem é uma ilha”, ele disse enquanto a tomava em seus braços. Ela tentou acreditar. Naqueles anos todos, nada prendeu, nada permaneceu, era tudo renúncia. Beatriz já não via diferença entre sua própria fuga e a dos outros. As duas aconteciam simultaneamente e ela não percebia se era abandonada ou se abandonava. Na manhã seguinte, foi embora sem dizer adeus. Mudou-se de planeta.

Em seu novo planeta, Beatriz bradou contra os ventos para quem quisesse ouvir, “eu sou uma ilha!”. Não havia ninguém. No silêncio sepulcral do seu novo lar, ela desejou mais do que nunca fincar suas raízes, mas a terra era rasa, seu planeta infértil. Pensou na tartaruga, nos amigos do passado, nas mãos quentes daquele homem que queria ensiná-la a ficar. Era tarde demais, Beatriz só aprendeu a fugir.

Passagem comprada, Beatriz embarcou em uma viagem só de ida. Foi-se embora para uma galáxia distante. Eu nunca mais soube dela.

Se você gostou deste conteúdo, ajude a divulgá-lo por aí. Compartilhe com seus amigos, 👏 e comente! Para ler outros textos meus, clique aqui.

--

--