Só sei que pela Vergueiro eu não passo

Porque já me cansei de pensar em você

Beatriz Coragem
Beatriz escreve
Published in
7 min readFeb 6, 2018

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Crédito: Susan J. Park

Chovia muito naquela tarde de março. São Paulo parecia pintada de preto e branco e, enquanto a água despencava ácida dos céus, eu engolia minhas próprias lágrimas. Era preciso ser forte enquanto me agarrava ao guarda-chuva que dividia com o Pedro.

As escadarias que levavam até a estação Vergueiro estavam escorregadias, mas as pessoas que esbarravam em mim não pareciam preocupadas com uma possível queda. Eu sempre me preocupei muito com quedas. O caminho pelo qual percorria a minha vida deveria ser uma subida, sem deslizes, sem percalços, sem dores desnecessárias e sem amores insensatos. Sempre fui muito rígida comigo e aquela fraqueza que tomava conta do meu corpo e fazia meus joelhos tremerem não era aceitável. Minhas roupas estavam úmidas, mas eu ainda conseguia sentir o cheiro do Pedro grudado na minha pele e o gosto do seu beijo impregnado na minha boca.

— Você vai no sentido Jabaquara? — Ele perguntou, mas já sabia a resposta. Fizemos o caminho da casa dele até o metrô sem trocar uma palavra. O Pedro ia na direção oposta, até a estação da Sé, e não pude deixar de notar que ele parecia aliviado pela separação iminente.

— Vou, respondi.

— Bom, preciso correr, já tô bem atrasado.

— Ei, a gente se vê? — Eu segurei a mão dele.

— Claro.

Ele desentrelaçou seus dedos dos meus, encaixou um beijo no meio da minha testa e foi embora. Nunca mais nos encontramos.

Durante os cinco anos em que me enrosquei e desenrosquei do Pedro, vivi o mais insensato dos amores, o amor que se vive sozinha. Num monólogo eterno, desejei em vão encaixá-lo entre os meus abraços, enlaçado em mim num nó que a gente nunca iria desatar. Eu nunca soube a hora de dizer adeus. Mas, pela primeira vez, não esperei que ele partisse, virei as costas e segui na direção oposta. Longe da chuva que caía inconsequente, do apartamento em que dormi poucas vezes e do seu sorriso meio torto.

Quando caí sentada no vagão que me levaria ao Paraíso, decidi que por aquele caminho eu não iria mais. O trem acelerou e eu permiti que as lágrimas escorressem quentes pelo meu rosto. Não tinha mais solução. Depois de escorregar, cair e cavar meu próprio buraco numa desilusão imatura, a única direção que eu poderia seguir era adiante. Longe do Pedro e da rua Vergueiro. Aquele caminho estava vetado e por ali eu nunca mais passaria.

Antes que eu fizesse a baldeação para a linha verde, eu decretei o fim das quedas. Cair de amores não é para mim. Era necessário que eu fizesse tudo ao contrário, que me virasse do avesso e me reinventasse. Desci na Vila Madalena e segui as ladeiras até a minha casa a pé. Apesar de carregarem em cada esquina lembranças de um passado bem recente, aquelas descidas já não tinham o conforto da familiaridade. Um ônibus fazia manobra para virar o quarteirão, os carros buzinavam apressados e um grupo de adolescentes passou entre risadas e palavras prepotentes que só a juventude pode proporcionar. Dentro de mim, permanecia o silêncio.

Ao chegar em casa, eliminei tudo que me lembrasse o Pedro. Comecei pela camiseta vermelha que ele abandonou aqui e que agora eu abandonava no lixo. Usei-a de pijama por duas ou três vezes, mas a mantive limpa, dobrada e guardada com cuidado no meu armário, esperando pela volta do seu dono. Na busca por resquícios do Pedro pela casa, encontrei: dois isqueiros; ingressos para todos os filmes a que assistimos juntos no cinema; um CD do Smashing Pumpkins que comprei numa tentativa mal-sucedida de gostar das mesmas músicas que ele e, por fim, uma foto 3x4 antiga que ele havia me dado anos antes. Na foto, seus cabelos eram curtos e a barba inexistente. Ele encarava a câmera sem medo, as sobrancelhas levemente arqueadas, os olhos pequenos e firmes, uma audaciosa pretensão de quem nunca duvidou de si mesmo. Ainda conseguia me lembrar daquele Pedro do passado. Eu gostava mais dele.

Não pensei duas vezes antes de jogar tudo fora. Percebi que nada ali era imprescindível para mim ou para ele. Objetos esquecidos, negligenciados pelo seu proprietário por não fazerem falta alguma na sua vida. Se nem o Pedro faz questão de ter essas coisas por perto, por quê eu deveria? Eu já tinha decorado a nossa história, do começo ao fim. Não precisava de isqueiros, livros, cds ou fotos para lembrar o que ele significava para mim. Eliminar objetos é sempre mais fácil do que eliminar lembranças e é por isso que andar pela Vergueiro está fora de cogitação.

Já me parece difícil o suficiente ter que caminhar pelo Largo da Batata todos os dias, em direção ao trabalho. Ainda posso vê-lo entre a Pedroso de Morais e a Faria Lima. Ainda lembro das cervejas que tomamos perto da Igreja e dos shows aos quais assistimos ali no Sesc Pinheiros. Entre a Fnac e o Tomie Ohtake, meu coração dispara de repente. Até preciso me esforçar para respirar se eu me deparo com outro homem moreno e alto como ele. Cruzei esses lugares todos, acompanhada ou sozinha, com o Pedro ou com amigos, mas não permito que minhas lembranças todas pertençam a ele.

Aquelas ruas, esquinas e bares não consigo e nem quero evitar. O Pedro não pode reivindicar posse de São Paulo inteira, isso eu não deixo. Se tivermos que determinar territórios, ele que fique com o resto da cidade, mas me deixe em Pinheiros. Ele me tirou noites de sono e minutos de sossego, ele tirou a minha paz, mas ele não vai tirar o meu bairro.

Os dias que seguiram o nosso último desencontro continuam meio borrados na minha cabeça. Alguma coisa estava fora do lugar, mas nem consigo dizer exatamente o quê. Os dias mudaram muito pouco ou quase nada. Apenas o suficiente para eu perceber, e mais ninguém. Acho que as horas ficaram mais curtas ou havia algo de errado com a tonalidade do céu, dos prédios, até mesmo das placas na rua. O vermelho parecia menos vivo, o cinza mais azul. Flutuar nas próprias memórias é assim. Como uma fenda no espaço-tempo onde a vida é quase idêntica à realidade. Nem mesmo sentia meus pés tocarem o chão enquanto me afundava nas lembranças de tudo que passamos juntos nesses lugares que ainda hoje eu frequento.

Aquela garota que vejo conversar com o Pedro em cada esquina, não reconheço mais. Até perdi o meu sotaque do interior, uma frase de cada vez, um dia após o outro, bem devagar e de repente tudo ao mesmo tempo. Uma outra pessoa tomou o lugar daquela garota. Mas memórias de quem eu fui e, principalmente, de quem nós éramos, essas continuam aqui, guardadas e seguras na minha cabeça, no meu peito, na minha pele e nos meus olhos cada vez que eu atravesso São Paulo e me sinto sozinha.

Sequer consigo imaginar aquela vida toda de novo, as semanas e problemas que se repetem, as saudades que chegam e nunca vão embora, a sensação de que eu não serei o suficiente pra você, não importa o que eu faça. Aqueles dias pertenceram a outra dimensão, uma realidade meio paralela e meio atravessada com essa que vivo agora. Carrego comigo as memórias daquela Beatriz, mas porque ainda não tive tempo de criar as minhas.

Não consigo evitar, fico imaginando como seria encontrá-lo por acaso. A Vergueiro está pertinho do Paraíso e, por mais que eu quisesse que o trem passasse direto, ou que a estação fechasse subitamente assim que eu me aproximasse, estou de mãos atadas. Vejo as portas do vagão que se abrem e me encolho, vasculhando furtiva cada rosto. Cada centímetro quadrado que me cerca é meticulosamente analisado. Quero estar preparada caso o Pedro entre por ali. Prefiro ser eu a primeira a notá-lo.

Mas se eu o encontro por lá, o que é que vou dizer? Vou dizer que o amo e que sinto saudades? Vou dizer toda vez que eu atravesso a Vergueiro de metrô um buraco negro se abre no meu peito, devastando tudo ao seu redor, sugando para algum lugar indefinido todos os sentimentos bons que antes invadiam meu corpo quando eu vivia por lá?

Queria que ele me perguntasse como estou. Eu seria displicente, explicando que a vida tá boa, sim. Tá corrida, muito corrida. O trabalho ocupa todo o meu tempo e eu ainda inventei de fazer um outro curso, mas a vida tá boa sim, não tenho do que reclamar. Neste momento, o Pedro abriria um sorriso, como ele sempre faz, e a gente seguiria o nosso rumo. Eu para um lado, ele para o outro. É sempre assim.

Meus hábitos demoram a morrer e eu sei que estou fazendo errado de imaginar a gente se encontrando ao acaso pela Vergueiro. Em primeiro lugar, porque isso nunca vai acontecer. Eu não passo por lá e nem quero passar. Além disso, eu já sei que a gente não dá certo. Nunca demos, não é agora que vamos começar.

Mas hoje o dia amanheceu esquisito e eu me atrasei para sair de casa. Não fui ao mercado, não lavei a louça, não arrumei a cama e deixei todas as roupas que provei negligenciadas no chão. O tempo seguiu apressado e eu pulei de um canto ao outro da cidade, sempre correndo, sem nem olhar para os lados. Não percebi quando anoiteceu. A lua estava cheia e o céu sem nuvens até revelava duas estrelas solitárias em meio as luzes da cidade.

Não sei se foi a pressa, o verão úmido de São Paulo, o tempo que cura todas as mágoas ou algum pedacinho de mim que voltou a funcionar sem que eu percebesse. Só sei que estava enfiada dentro de um táxi quando atravessei Vergueiro. Ah, se eu soubesse!

Só fui perceber quando ela já mudava de nome. Em instantes, eu estava na Avenida Paulista.

Não doeu mais.

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