Uma questão de etimologia

Sobre as esquisitices da língua portuguesa

Beatriz Coragem
Beatriz escreve
Published in
3 min readJun 18, 2019

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“Esquisito é bom”, ele me disse com um sotaque que não deixava dúvidas, não éramos do mesmo país. Às vezes me pergunto até se aquele homem que se deitava ao meu lado veio deste planeta — algumas distâncias parecem muito maiores que meras divergências linguísticas.

“Talvez seja bom para você, que nunca se sentiu esquisito em português.”

Encarei o teto do apartamento dele como se as rachaduras e as infiltrações de água fossem a coisa mais interessante que já vi. O tempo passava devagar, exigindo de mim uma calma que eu não era capaz de oferecer. Por aqui, na terra do Machado de Assis, minha própria existência parece uma falha no espaço-tempo, um acaso inoportuno do universo, porque sou, em bom português, meio esquisitinha.

Esquisito em português, exquisito em espanhol, exquisite em inglês, exquis em francês, squisito no italiano e até exquisit no alemão. A origem dessas palavras todas é, claro, o latim: exquisitus, formado do prefixo ex- “para fora” e da mesma raiz de quaerere, “procurar, buscar”. Exquisitus é, portanto, algo extraído dentre um todo, escolhido a dedo. Só mesmo na língua de Camões que a palavra, antes tão inofensiva, ganhou um sentido pejorativo.

Se no dicionário de 1813 do brasileiro Antônio de Morais Silva o sentido de exquisito (na época, ainda com x) é apenas positivo, um pouco mais de cem anos depois a situação muda. Na segunda edição do dicionário de J. Timóteo da Silva Bastos, a palavra (agora com s) se tornou sinônimo de excêntrico, estrambótico, maníaco. Foi assim, em algum momento na segunda metade do século XIX, que a mudança de significado aconteceu e causou até mesmo a criação de uma palavra nova, esquisitice. (VIARO, 2011)¹

Os falsos cognatos que me separam do estrangeiro ao meu lado e dividem nossas línguas nessa evolução caótica através dos séculos são evidências de algo que já suspeito há anos: o tempo é a grandeza física mais cretina da história humana. Responsável por mudar o sentido das palavras, por falhas de comunicação insuperáveis e pelas minhas crises de ansiedade quando coloco os pés para fora de casa, é o tempo, por fim, que me tornou esquisita.

O tempo já fez lugares que antes me confortavam se tornarem fontes de angústia. Ele me ajudou a esquecer dos namorados que me fizeram chorar e a falta dele fez com que outros amores surgissem contra a minha razão, mesmo que as distâncias fossem continentais e os fusos horários intransponíveis. É o excesso de tempo que me acorda toda noite com a sensação de que nada nunca ficará bem, porque eu nem sequer sei se minhas esquisitices cabem nesse mundo.

Numa dessas madrugadas eu abro os olhos e vejo, me encarando, o gato persa do gringo que dorme o sono tranquilo de quem nunca foi esquisito em português. Eu seguro o gato no colo, ele se aninha nos meus braços e, assim, minha única companhia no breu da noite, pegamos no sono mais uma vez. Ele ronronando porque se sente no lugar certo, eu suspirando porque um dia quero encontrar o meu. Mas essa é uma questão de tempo, voltemos à etimologia.

Bibliografia:

¹VIARO, Mário Eduardo (2011). As esquisitices do tempo. Revista Língua Portuguesa, nº 67.

Aliás, muito obrigada, Mário Eduardo Viaro, professor de Língua Portuguesa pela USP e autor do artigo que me sanou a dúvida que por anos me acompanhou: quando foi que ser esquisito se tornou uma coisa ruim?

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