A língua afiada de Dottie

Renata Kotscho
Bebendo a morta
Published in
4 min readJan 15, 2021

Se tem uma pessoa que faria sucesso no Twitter é Dorothy Parker, a musa das tiradas mais ácidas do século passado.

Dorothy Rothschild nasceu em 1893 na casa de veraneio da família em New Jersey, mas foi logo levada para o apartamento em Manhattan onde moravam, para ser criada como uma verdadeira nova iorquina.

O pai de Dottie, Jacob, era um comerciante de origem judaica e a mãe, Eliza, uma dona de casa de origem escocesa. Viviam confortavelmente em Upper West Side até que a mãe morrer um mês antes da menina completar 5 anos.

Um ano depois, Jacob casou-se com Eleanor, que Dorothy recusava-se a chamar de mãe ou mesmo de madrasta, e tratava a nova patroa do pai por governanta.

Foi nessa época que também foi convidada a se retirar da escola católica onde estudava.

Quando Dottie tinha 19 anos, o irmão mais novo do seu pai, o seu tio Martim, morreu na tragédia do Titanic. Depois disso Jacob teve depressão e também faleceu em seguida.

Sozinha, a jovem tocava piano em escolas de dança para se sustentar, mas sonhava em ganhar a vida como escritora.

Aos 21 anos vendeu seu primeiro poema para a Vanity Fair e logo depois foi contratada para escrever para a Revista Vogue.

Em 1917, aos 24 anos, Dorothy como era esperado de uma boa moça casou-se com o Edwin Pond Parker, de quem adotou o sobrenome. Parker era um corretor de Wall Street, um clichê nova-iorquino perfeito para Dottie.

Mas a Primeira Guerra Mundial separou os pombinhos e Edwin foi convocado para lutar na Europa. Quando ele voltou, sofrendo de stress pós traumático e alcoolismo, os dois acabam se divorciando.

Foi nessa época que a carreira de Dorothy deslanchou. Ela fazia parte do Algonquin Round Table, um grupo de gente linda que se encontrava diariamente na hora do almoço para comer bem e conversar sobre arte, literatura, política e filosofia, sempre regado a muita bebida e sarcasmo. (Inclusive, quero!)

Como poeta, seu primeiro livro, Enough Rope, foi um bestseller imediato vendendo 47 mil cópias em 1926.

Os versos de Dorothy contam as suas desventuras amorosas, e como ela não escondia que gostava de homens bonitos e cruéis, acabava tendo alguns probleminhas (quem nunca?).

Os críticos diziam que ela escrevia “flapper verses” um jeito escrotinho de dizer que eram versos de menina boba. Errado, os versos de Dorothy parecem cômicos e leves, mas tem uma lâmina afiada para fazer picadinho de hipocrisia.

O problema é que já naquela época não era possível ser irônica, vaidosa, gostar de moda, de homem, de fumar, de beber e ainda querer ser levada a sério.

Em 1927, Dorothy abraça o ativismo político e começa a militar para as causas das liberdades e dos direitos civis. É uma das fundadoras na liga Anti-nazista de Hollywood e chegou a viajar para a Espanha para lutar contra o General Franco.

Enquanto militava, Dorothy continuou escrevendo e em 1929 ganhou o prêmio O. Henry Award, uma espécie de Oscar da literatura, pelo seu livro de contos Big Blonde.

Seu estilo é irônico e sarcástico e ao mesmo tempo dolorido. Combina muito com o momento rir pra não chorar que estamos vivendo.

Na década de 30 e 40, Dorothy mudou-se para Hollywood, casou-se com Alan Campbell, 11 anos mais novo e bisexual assumido, um escândalo na época.

O casal escreveu juntos vários roteiros de sucesso, sendo o mais conhecido A Star is Born (refilmado recentemente com Lady Gaga e Bradley Cooper juntos e shallow now).

Com Alan, Dorothy viveu um relacionamento conturbado cheio de idas e vindas. Casaram-se em 1934, divorciaram em 1947, recasaram em 1950, divorciaram-se mais uma vez em 1952, reconciliaram-se de novo em 1961 e em 1963 ele morreu de overdose (o mesmo destino do primeiro marido de Dorothy).

Durante o macartismo e a caça aos comunistas nos EUA, Dorothy entrou para a lista negra de Hollywood e não conseguiu mais trabalhar. Mudou-se de volta para Nova York e viveu reclusa em um hotel até morrer em 1967, aos 73 anos.

Deixou toda sua herança para Martin Luther King Jr e seu movimento (ele seria assassinado no ano seguinte).

Para brindar essa musa que ao acordar de manhã a primeira coisa que fazia era escovar os dentes e afiar a língua, preparei um Martini, seu drink preferido.

Sobre o Martini, ela escreveu os seguintes versinhos meigos:

“I like to have a martini,

Two at the very most.

After three I’m under the table,

after four I’m under my host.”

Cheers!

--

--

Renata Kotscho
Bebendo a morta

Médica formada pela UNICAMP, especializada em Medicina Estética pela American Board of Aesthetic Medicine