A musa fantástica

Renata Kotscho
Bebendo a morta
Published in
5 min readApr 9, 2021

Henrietta Constance Smithson, “Harriet” para os íntimos, é uma musa inspiradora que eu não conhecia. Já a obra de arte que ela inspirou é uma das mais estupendas da história da música: A Sinfonia Fantástica, de Hector Berlioz, um dos mais revolucionários compositores de música clássica.

Mas antes de falar da sinfonia, vamos falar da musa, afinal hoje é o dia dela.

Harriet nasceu na região de Clare, na Irlanda. Seu pai era dono de um teatro local e sua mãe fazia pontas como atriz nas peças que eram encenadas no teatro do pai.

Harriet nasceu perto do palco e logo também começou a atuar. Adolescente foi apresentar-se em Dublin e depois em Londres, mas nunca chegou a fazer muito sucesso na Inglaterra. Os ingleses não ficavam muito impressionados com as suas interpretações exageradas.

O sucesso chegou quando foi se apresentar em Paris. O ano era 1827 e a capital francesa vivia um boom de Shakespeare, que virou modinha na cidade luz naquela época. A Companhia de Teatro de Harriet foi apresentar Hamlet no teatro Odeon e foi sucesso imediato.

O público apaixonou-se por Harriet que além de belíssima no auge dos seus 27 anos, interpretava as falas de Ophelia com mímicas, tornando o texto de Shakespeare muito mais compreensível para a platéia francesa.

Mas um francês em particular não ficou apenas encantado com a atriz, ele ficou completamente enfeitiçado, obcecado e fez de tudo para conquistar o coração da moçoila.

O jovem Hector de 24 anos, primeiro comprou ingresso para todas as encenações da musa, ia esperá-la no camarim. Harriet nem tchuns pra ele. Então o creepie alugou um apartamento em frente ao apartamento dela de onde ela conseguia vê-la chegar todas as noites e espiava a moça até a hora que ela apagava as velas e ia dormir.

Como Harriet não dava a menor bola para o jovem compositor, ele então resolveu canalizar todo aquele tesão reprimido e em 6 semanas compôs a Sinfonia Fantástica.

Para não deixar nenhuma dúvida sobre as suas intenções com a sinfonia, Berlioz escreveu um libreto em que ele entregava todos os “easter eggs” (rs) da história de amor que ele estava contando ali, através de música instrumental. Entregava tanto que escandalizou os próprios parças de Hector que achavam que o migo estava se expondo demais. (Quem nunca?)

A sinfonia fantástica é composta por 5 movimentos em que Berlioz declara o que ele chama de sua “ideia fixa”

Vou tentar resumir para vocês:

No primeiro movimento, que ele chama de Devaneios e Paixões, o compositor conta que levava uma vidinha sossegada meio sem sentido até que encontrou com aquela que vai ser a razão da sua existência. E a partir daí o jovem apaixonado intercala momentos de êxtase por estar amando, com períodos de angústia por esse amor não ser correspondido. Essa é a parte mais autobiográfica da sinfonia.

No segundo movimento a sinfonia é um baile, com uma das valsas mais lindas que já foram compostas. Nessa dança de acasalamento, o apaixonado vai tentando aproximar-se da sua musa que foge dele ao som de uma clarineta febril e a gente já vai percebendo que o jovem não está batendo muito bem.

(um parênteses aqui, rolava um ópio a dar com o pau em Paris naqueles tempos e Hector tinha duplamente acesso ao entorpecente que era vendido como medicamento, não só seu pai era médico como o próprio Berlioz também tinha sido estudante de medicina. Vejam só que mundo pequeno, rs)

Bom, no terceiro movimento, inspirado nas pastorais de Bethoven, a principal referência musical de Berlioz, o jovem doidão vai se refugiar nas paisagens campestres e curtir seu ópio em paz na natureza.

Não funciona muito bem porque chega uma tempestade e ele vai ficando cada vez mais alucinado de ciúmes.

É o momento em que as tubas soam forte e o jovem em delirio decide suicidar-se. Mas ao invés de se matar, ele acaba matando a sua musa.

O assassino recebe então a sentença de morte e como ainda era o tempo da guilhotina em Paris, a lâmina cai, sua cabeça sai rolando e termina o quarto movimento.

O último movimento é loucura total, o maluco vai acertar as contas com o diabo no inferno e no final a sua amada morta aparece em uma orgia demoníaca para celebrar seu castigo. Bem feito.

A sinfonia foi sucesso imediato e Berlioz foi imediatamente lançado ao estrelato da música. Nem assim a Harriet deu bola pra ele. Ela não foi nem assistir a apresentação da sinfonia.

Bem, como a carne é fraca e a fila anda, Berlioz apaixonou-se novamente. Dessa vez pela jovem pianista de 18 anos da sua orquestra. A mãe da moçoila apoiava o cortejo e os dois chegaram a ficar noivos. Mas Camille acabou arrumando um partidão melhor, dono de uma fábrica de pianos e deixou o músico morrer na praia novamente.

Assim como seu personagem e tomado por ciúmes, Berlioz chegou a comprar veneno para tentar matar a ex noiva, o empresário e a ex futura sogra, mas acabou desistindo do plano e só encheu a cara de ópio mesmo.

Na mesma época, Harriet estava voltando a encenar uma nova peça em Paris, Romeu e Julieta (claro). Berlioz não poderia perder a musa no papel de Julieta e lá foi ele de novo ao teatro vê-la.

Como já diz Tim Maia, paixão antiga sempre mexe com a gente, ele ficou novamente inspirado pela irlandesa e compôs uma continuação da Sinfonia Fantástica, chamada Lélio, ou “o retorno à vida”.

Na continuação o jovem apaixonado pede perdão e se reconcilia com a musa. Além, do libreto com tudo bem desenhandinho, em Lélio Berlioz também usou um narrador, que ia contando a história que estava sendo apresentada musicalmente.

Desta vez Harriet, provavelmente de saco cheio de tanto seus amigos insistirem, acabou finalmente indo assistir a sinfonia que tanto falavam.

Claro que ela sacou na hora que a musa daquela obra fantástica era ela e dessa vez não resistiu e apaixonou-se perdidamente também.

Harriet e Hector então começaram a namorar, a contragosto das duas famílias que achavam uma loucura aquele relacionamento, até porque Harriet mal falava francês e o namoradinho mal falava inglês.

Mas sabe como é? Adianta falar? Casaram-se no ano seguinte e logo em seguida tiveram um filho. Nem preciso contar que a carreira de Harriet foi entrando em declínio com a idade, o filho e o casamento, enquanto Berlioz era cada vez mais reconhecido internacionalmente.

Aí o jogo virou, e quem começou a ter crises de ciúmes e a encher a cara de álcool foi ela, que até batia nele. Como numa profecia auto-realizável, Hector começou mesmo a ter um caso com a cantora de ópera, Marie Recio, que viria a ser sua segunda esposa.

Quando soube do affair, Harriet saiu de casa com o filho. O ex casou de novo, mas continuou pagando as contas dela até a sua morte, bem jovem, aos 53 anos em decorrência de um derrame.

Berlioz, como falei, casou-se com Marie, mas antes de morrer, deixou instruções explícitas para que o corpo da Harriet fosse exumado e enterrado ao seu lado, no cemitério de Montmartre, e assim foi feito. Pelo menos mortos ficaram juntos para sempre.

Para brindar essa musa fantástica eu resolvi preparar um Irish Coffee. Vai uma dose e meia de uísque irlandês, uma dose e meia de café bem quente, uma colher de sopa de açúcar mascavo e chantilly por cima.

Cheers!

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Renata Kotscho
Bebendo a morta

Médica formada pela UNICAMP, especializada em Medicina Estética pela American Board of Aesthetic Medicine