A pecadora original

Renata Kotscho
Bebendo a morta
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4 min readMay 7, 2021

Na semana do dia das mães, eu escolhi brindar a nossa primeira progenitora: Eva.

Eva é uma espécie de santa maldita da Bíblia. Ao mesmo tempo em que é a filha primogênita de Deus, carrega uma espécie de mal inerente a todas as mulheres: é considerada fraca, desobediente, sedutora e no final das contas, má. E portanto merece castigo.

Não apenas ela, para toda a eternidade, mas também todas as filhas de Eva devem carregar na testa a marca escarlate do pecado original e como castigo padecerão de sangramentos mensais e das dores no parto.

Essa crença é tão arraigada que quando a anestesia caudal para trabalho de parto foi criada, no início da década de 40 do século passado, 1942 anos depois do nascimento de Cristo, muitos grupos religiosos foram contra, uma vez que o procedimento contrariava as palavras divinas.

Nenhuma outra passagem da Bíblia teve impacto tão negativo na vida das mulheres como o Gênesis, que conta a história da maçã.

A versão de Eva que eu conheci na infância, lendo a ~História da Bíblia para Crianças~ e frequentando as aulas de catecismo na igreja católica era contada mais ou menos assim:

Eva, a primeira mulher, teria sido criada a partir de uma costela de Adão, para ser uma espécie de dona de casa do Jardim do Éden e ajudante do conge.

Certo dia, a safadinha estava tão entediada com os afazeres domésticos (e olha que ela nem tinha que lavar roupa) que foi dar ouvidos ao canto da serpente que garantia que não pegava nada dar uma mordidinha na fruta proibida, a tal da maçã…

…Eva sabia que Deux tinha falado que ela e Adão podiam fazer qualquer balbúrdia no paraíso, menos comer a tal frutinha apetitosa. Mas Eva, curiosa como toda mulher, não só mordeu o fruto proibido como ofereceu ao pobre e inocente Adão…

…Deux não curtiu muito quando soube das novidades e expulsou os pombinhos do paraíso. Os dois se deram mal, mas só as filhas de Eva carregam no corpo a impureza do pecado original.

Mulher é considerada tão impura até hoje pela religião católica que só pode batizar um bebê no leito de morte, evitando assim que a criança morra pagã, se não tiver nenhum macho à mão para fazer o serviço. (ou pelo menos foi assim que eu aprendi no curso de batismo)

Com isso Eva, apesar de ser a primeira, perde o título de mãe mais que perfeita para Maria, a abnegada virgem que não se divertiu nem na hora de fazer. Isso sim é que é uma mulher de verdade!

Mas, se você ler a Bíblia (e eu recomendo que leia, é uma leitura muito interessante e inspiradora), vai perceber que essa versão de Eva é meio fake news.

Na verdade, essa é uma interpretação tendenciosa da Bíblia criada pelos líderes religiosos cristãos dos tempos medievais, como São Tomás de Aquino, para justificar não só a submissão, como também a perseguição contra as mulheres. Foram essas interpretações que justificaram a Inquisição e a execução de várias mulheres na fogueira acusadas de bruxaria.

Pior que até hoje, muitos homens ainda usam argumentos mal tirados do Gênesis para justificar seu direito de disciplinar suas esposas quando elas não se submetem “apropriadamente”. E pior, muitas mulheres continuam aceitando esse tipo de abuso porque seguindo recomendações dos seus líderes religiosos “conservadores”, acreditam que é assim que uma mulher deve se comportar.

A primeira interpretação, digamos assim, mais feminista da Bíblia foi escrita através do esforço de Elizabeth Cady Satton, em 1895, quando ela publicou um livro chamado “Woman ‘s Bible” (A Bíblia das Mulheres), com uma interpretação mais igualitária do Gênesis.

Segundo a interpretação de Elizabeth, no texto original da Bíblia, Eva não é uma assistente inferior de Adão e sim sua parceira protetora criada a sua semelhança para uma relação de igual para igual.

Considerada um escândalo na época, essa interpretação da Beth foi rechaçada inclusive pelas feministas que, focadas na campanha sufragista pelo direito ao voto, achavam que essas ideias muito radicais poderiam prejudicar a imagem do movimento.

Com isso, a tese ficou dormente até o fim dos anos 60, quando surgiu a segunda onda do feminismo. Foi nessa época que Phyllis Trible resgatou o trabalho de Beth e demonstrou que, apesar da Bíblia ter sido escrita por homens para homens, o texto original é muito menos sexista do que as interpretações posteriores.

Nessa nova interpretação, Eva é uma mulher inteligente, curiosa, comunicativa, que avalia o cenário e os argumentos da serpente e toma a sua decisão de maneira consciente e autônoma em busca da liberdade, enquanto Adão é quem seria o fraco, guiado pelo estômago e que aceitou sem pensar a proposta da mulher.

Phyllis argumenta também que esse negócio das mulheres serem inferiores porque Eva foi criada depois não tem nada a ver, fosse por isso Adão seria inferior aos animais porque foi criado depois…pela lógica, a última criatura, a mulher, seria o ápice da obra de Deus. Glória!

(E isso que eu ainda nem falei da Lilith :-)).

Para brindar mamãe Eva eu resolvi preparar, claro, um Appletini. Vai uma dose e meia de vodka, meia dose green apple schnapps (licor de maçã verde), suco de meio limão e gelo.

Cheers! Feliz dia das mães <3

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Renata Kotscho
Bebendo a morta

Médica formada pela UNICAMP, especializada em Medicina Estética pela American Board of Aesthetic Medicine