A poetisa do apetite

Renata Kotscho
Bebendo a morta
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4 min readSep 4, 2020

Eu sou uma pessoa tão distraída, que no dia que eu recebi o maior elogio da vida, eu simplesmente não entendi.

Foi assim: a Joana Monteleone , lendo as minhas histórias me falou algo como “o jeito que você escreve sobre drinks me lembra muito a M.F.K. Fisher, ela é a sua cara, gêmeas”.

Eu anotei a dica e encomendei dois livros da escritora para conhecer: “Consider the Oyster” (algo como Dê uma chance para a Ostra) e o “How to cook a wolf” (Como cozinhar um lobo).

Semana passada eu peguei os livros para ler e comecei também a pesquisar sobre a vida da nossa musa. Resumindo: Estou completamente apaixonada. Que mulher inspiradora! Fiquei envergonhada de não ter conhecido antes. Acontece, ainda bem que nunca é tarde.

Mary Frances Kennedy nasceu em 1908 no estado de Michigan poucos minutos antes do dia 04 de julho e por sorte não recebeu o nome de Independencia, como queria seu pai, um pequeno editor de jornal de bairro.

Mary começou a escrever poesia aos 5 anos e na adolescência trabalhou como “frila” no jornal do pai escrevendo até 15 artigos por dia. Foi nessa época que aprendeu a escrever rápido e a prender a atenção do leitor sem ser chata.

Não era uma aluna exemplar, mas acabou indo fazer faculdade na UCLA na Califórnia, onde conheceu seu primeiro marido Al Fisher.

Depois do casamento, os pombinhos velejaram até a França onde Al foi fazer seu doutorado em letras enquanto Mary estudava Belas Artes e deleitava-se com todos os prazeres que a culinária francesa é capaz de oferecer: queijos, vinhos, sobremesas e muitos cremes.

E ainda tem pão crocante saindo do forno, geléia de morangos colhidos na hora e batatas fritas crocantes, mas não uniformemente douradas.

Mary era especialmente fascinada pela pequena e suculenta couve flor que comprava fresca no mercado local e preparava gratinada boiando no creme de leite e na manteiga.

Foi nessa época que Mary aprendeu a comer ostra, tema do primeiro livro dela que eu li.

O livro começa contando a saga da ostra pela sobrevivência no mar agitado e tudo que essa pequena preciosidade enfrenta até poder ser degustada fresca acompanhada de champagne bem gelada.

A forma como Mary descreve, se lá pelo terceiro, quarto capítulo você não está de joelhos implorando para comer ostra é porque o seu desejo está morto por dentro.

Poetisa do apetite foi a descrição que o autor John Updike deu para M.F.K., mas a definição da sua escrita que eu mais gosto é a seguinte “ela escreve de comida como os outros escrevem de amor, só que melhor”.

Mary era daquelas pessoas que sabia viver.

Depois de passar uma temporada com o querido Al na França, ela volta para a Califórnia onde conhece o artista plástico Dillwyn “Tim” Parrish, o grande amor da sua vida.

Quando se conheceram Mary ainda era casada com Al e Tim era casado com Gigi, uma atriz de Hollywood. Os casais eram vizinhos e foram ficando amigos. Até que Mary e Tim se apaixonaram.

Mary conta que se declarou ao crush em uma conversa ao pé do piano, já Gigi afirma que a ex amiga deitou pelada depois do jantar na cama do marido quando ela não estava. Fato é que Mary e Tim acabaram juntos e se mudaram para Suíça.

Com Tim, o talento de Mary floresceu e ela começou a publicar livros profissionalmente. Seu estilo é direto, irônico e muito subjetivo.

E o melhor de tudo é que ela escreve despudoradamente, sem em nenhum momento esconder sua vontade, seu desejo e suas muitas sonecas da tarde.

Mary escrevia para distrair as dores do marido para quem lia suas histórias em voz alta. Tim sofria de Tromboangiite Obliterante, uma doença debilitante muito grave e dolorosa que leva a necrose das extremidades e por isso o paciente acaba precisando fazer diversas amputações.

Tim sentia dores muito fortes e a medicação que ele precisava não estava disponível nos EUA, onde o casal voltou a morar durante a Segunda Guerra. Mary chegou a fazer uma petição para o presidente Roosevelt para conseguir importar o remédio, mas nada feito. Com dores cada vez mais fortes, Tim acabou suicidando-se com um tiro em 1941.

No ano seguinte Mary publicou How to cook Wolf. Viúva, passando pelo racionamento de comida e de gás durante a guerra, nossa musa escreveu este livro que deveria ser leitura obrigatória em 2020.

O lobo do título é uma metáfora para fome e o livro é uma espécie de guia de como manter a graça, a beleza e a dignidade em tempos obscuros e com escassez.

Só ela para fazer isso de uma maneira leve, engraçada e até enobe. É um deleite. O jeito que ela explica como cozinhar o último ovo do racionamento transforma uma situação desesperadora em uma obra de arte lírica.

E ela mesma explica “como a maioria dos humanos eu estou com fome e as nossas três necessidades básicas são comida, segurança e amor…então quando eu escrevo sobre fome, na verdade eu estou escrevendo sobre o amor e da minha fome por ele”.

Depois da morte de Tim, Mary casou-se novamente teve duas filhas, escreveu roteiros para hollywood e publicou no total 27 livros, sempre comendo e bebendo do bom e do melhor e escrevendo sobre o prazer de se deliciar `a mesa. “Primeiro a gente come, depois a gente faz todo o resto”, dizia.

Mary gostava mesmo de beber vinho, os melhores Franceses e Californianos. Mas achei uma receita de drink que ela recomenda em How to cook a Wolf por ser bom e barato. Chama Half & Half: metade Sherry, metade vermute seco, suco de meio limão, gelo e casca de limão para enfeitar. Delicinha! Cheers!

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Renata Kotscho
Bebendo a morta

Médica formada pela UNICAMP, especializada em Medicina Estética pela American Board of Aesthetic Medicine