Cartas do verão de 1926

Renata Kotscho
Bebendo a morta
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5 min readSep 11, 2020

Eu titubeei se deveria ou não contar essa história para vocês porque talvez ela seja trágica demais para os nossos corações já sofridos, mas é tão bonita que achei que valia a pena.

Então hoje vamos trazer não uma musa ou um muso, mas um trio para brindar com a gente.

Começamos primeiro pela dama: Marina Tsvetaeva nasceu em Moscou em 1892. Filha de um professor universitário de artes plásticas com uma pianista, Marina cresceu livre, leve e solta em uma família privilegiada. Vivia de sombra e água fresca em Moscou cheia de contatinhos e chegou até a ter uma relação lésbica. Muito culta, foi estudar em Lausanne na Suíça e depois na Sorbonne, em Paris. Tornou-se poeta. Até que veio a Revolução Russa quando ela tinha 25 anos.

Entre 1917 e 1922, Marina ainda permaneceu na Rússia onde escreveu diversos poemas e peças demonstrando a sua insatisfação com o regime, até que, foi obrigada a se exilar junto com seu marido, um ex-militar da reserva do exército branco.

Nesta época, a miséria em que vivia era tanta que Marina achou melhor deixar suas duas filhas em um orfanato, porque acreditava que lá elas teriam mais chances de sobreviver. Estava enganada, uma das filhas acabou morrendo de inanição.

Perseguido pelo regime comunista, casal exilou-se em Praga e depois em Paris. Lá, junto da filha que sobreviveu viviam em situação de pobreza e abandono. Isolados e solitários.

Foi então que em 1926, aos 34 anos, Marina conheceu outro poeta russo, Boris Pasternak (que mais tarde ficaria conhecido e seria indicado ao prêmio Nobel pelo seu romance Dr. Jivago).

Apenas dois anos mais velho do que Marina, os dois poetas tinham muito em comum: mãe pianista, pai professor universitário e uma paixão pela Alemanha e pela literatura alemã.

Boris leu os poemas de Marina, ficou encantando e escreveu uma carta para a poetisa. Ela respondeu e os dois começaram uma amizade colorida em que falavam das suas angústias pessoais e das suas produções criativas.

Logo depois entra o terceiro personagem da nossa história, o poeta alemão Rainer Maria Rilke.

Então com 51 anos, Rilke era um mito da literatura para os jovens poetas Russos. O alemão, em contrapartida, era fascinado pela Rússia e havia escrito vários poemas e romances sobre a antiga terra dos Czares.

Rilke conheceu os poemas de Boris e os dois entraram em contato e em seguida Boris apresentou o trabalho de Marina ao escritor alemão. Começou assim a correspondência entre os três que está reunida em um livro lindo chamado “Letters: Summer 1926”.

(Abrindo um parênteses aqui, eu adoro ler literatura de cartas e diários. Além da sensação de estar fazendo algo meio proibido, também é gostoso conhecer o cotidiano de grandes gênios)

Mas voltando ao livro, na época Marina ainda estava exilada em Paris, Boris morava em Moscou com sua esposa doente e em conflito com o regime comunista, enquanto Rilke estava no spa Valmont, na Suíça, morrendo de leucemia.

(eu avisei que a história era trágica…)

Apesar disso, trocaram cartas belíssimas que contam histórias de êxtase e desespero.

No desenrolar das correspondências, os três vão se encantando um com o outro, ao mesmo tempo em que estão cada vez mais fudidos.

Nesse imbróglio tem também muito atraso de cartas, desentendimentos, falhas de comunicação que vai criando uma mágoa e uma competição ao mesmo tempo em que cresce uma tensão erótica entre os três.

Tudo isso escrito em um lirismo que mistura a poesia russa com a alemã. É pra ler de joelhos.

(Vou contar o final da história do trio aqui, que não é spoiler porque não está no livro, mas já recomendo pegar um lenço…)

Apesar de nas cartas os três fazerem mil planos de se encontrarem pessoalmente, isso é frustrado porque Rilke acaba morrendo de leucemia no final daquele ano.

Marina e Boris continuaram se correpondendo por mais quatro anos, até que finalmente tiveram o que ela classificou como um “não-encontro” ao contar o que aconteceu a uma amiga…

Em 1930, Boris teria ido a Paris obrigado pelo regime comunista para fazer propaganda do governo em uma feira literária. Marina não gostou do amigo estar lá por aquele motivo, mas acabou encontrando-se com ele na Gare de Lyon.

Paralisados pela emoção de finalmente estarem frente a frente e incapazes de conversar um com o outro, o encontro não correu nada bem. Na estação Marina estava com uma mala velha que não fechava direito então Boris arrumou uma corda e ajudou a consertar. Depois disso, como em um clichê de parachoque de caminhão, saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou.

Marina iria reencontrá-lo na Rússia mais tarde em situação ainda pior. Em 1939, sem condições de se manter em Paris, ela o marido e a filha voltaram para a União Soviética. Chegando lá a filha e o marido foram presos e acusados de espionagem. Marina pediu ajuda de Boris e conseguiu libertar a filha, mas o marido acabou fuzilado.

Em 1941, aos 49 anos, após ter sido recusada como faxineira no clube de escritores de Moscou, Marina usou a corda que Boris havia amarrado a sua mala na estação de trem de Paris e se enforcou.

Sim, é um horror. Um horror pra gente não esquecer que gulags não eram uma colônia de férias literárias, que nenhum ditador presta e que todas as ditaduras perseguem artistas.

Para aquecer um pouco a nossa alma eu resolvi preparar um smash de vodka com figo.

(Eu tinha que usar figo pois, no meio dessa situação que estamos vivendo, um vizinho deixou uma sacola de papel˜ão no hall do prédio com figos orgânicos de presente para os moradores. A primeira vez eu vi fiquei com medo e pensei…deve estar cheio de covid. Mas depois achei o gesto tão delicado e nenhuma razão para ter mais covid ali do que no supermercado, então peguei dois figos para mim, lavei bem e resolvi usar no drink).

Como fazer: cortar um figo em pedaços pequenos e amassar no fundo de um copo com uma colher de mel. Juntar gelo picado, uma dose de vodka, meia dose de cointreau e por fim misturar tudo com uma colher. Enfeitei com um raminho de hortelã e fatias de figo.

Cheers!

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Renata Kotscho
Bebendo a morta

Médica formada pela UNICAMP, especializada em Medicina Estética pela American Board of Aesthetic Medicine