La Divina

Renata Kotscho
Bebendo a morta
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5 min readAug 7, 2020

Minha paixão por óperas começou de maneira inusitada. Meu chefe no mercado financeiro saiu para fazer MBA e eu fui promovida. Nosso trabalho era fazer parcerias com gerentes de bancos suíços. Pois bem, meu antecessor costumava levar esses gringos em lugares pitorescos da cidade de São Paulo onde eles podiam apreciar dançarinas com bastante melanina e pouco pano. Sem poder continuar oferecendo o mesmo tipo de entretenimento aos viajantes, eu tive a brilhante ideia de convidá-los para assistir Turandot, no Teatro Municipal.

Claro que só eu achei a ideia brilhante. Faltou volume no Nessun dorma para que os gringos não pegassem no sono de tédio ao lado da branquela aqui. Rapidamente mudei de estratégia e passei a levar os visitantes a jogos de futebol. Ufa! Coxas de homens correndo atrás de uma bola mais os meus conhecimentos sobre a regra do impedimento salvaram meu emprego.

Mas o encantamento por ópera permaneceu. A minha preferida é também uma das mais populares, Carmen, de Bizet, que escandalizou Paris no seu debut em 1875. Sou fascinada pela história do ingênuo soldado Don José, seduzido pela vigarista cigana que por sua vez prefere o glamuroso toureiro Escamillo.

E ninguém interpretou a Habanera melhor que Maria Callas, La Divina.

L’amour est enfant de Bohême
Il n’a jamais, jamais connu de loi
Si tu ne m’aime pas, je t’aime
Si je t’aime, prend garde à toi!

Algo como: O amor é filho da boêmia (ou seja, um fdp) que nunca segue as leis. Se você não me ama, eu te amo. Se eu te amo, fica esperto aê!

Mas, apesar de ser a intérprete mais famosa da ária, Callas nunca atuou como Carmen nos palcos. Isso porque, insegura e perfeccionista, La Divina acreditava que os seus tornozelos não estavam a altura da personagem.

Como assim, os tornozelos? Eu explico.

Maria Anna Cecilia Sofia Kalogeropoulos (sobrenome que foi resumido para Kalos antes de virar Callas) nasceu em Manhattan em 1923, filha de imigrantes gregos. Quando tinha 14 anos, a mãe brigou com o pai, pegou as duas filhas e se mandou de volta para Atenas.

Durante a Segunda Guerra, Maria teve uma juventude difícil. Sem transporte público andava muitos quilômetros para ir diariamente da sua casa até o conservatório, onde chegava a ensaiar mais de 10 horas por dia, muitas vezes sem comer. Enquanto isso, sua mãe tentava empurrar ela e a irmã para cima dos soldados, para que conseguissem alimentos ou dinheiro.

Com o tempo, começou a fazer sucesso como cantora lírica, mas sua figura não agradava. Alta, corpulenta, olhos grandes, boca grande, seios fartos. Tudo nela era enorme. Foi então que, ao conhecer Audrey Hepburn em Milão, a cantora decidiu que seria tão magra quanto a atriz.

Com sua disciplina espartana, Callas emagreceu 37 quilos em um ano. Disposta a se transformar-se em um corpo tão perfeito quanto a sua arte, dedicou-se também a intensas sessões de ginástica e massagens. Virou ícone de estilo. Porém, a perda de peso rápida deixou seus tornozelos flácidos e impediram que ela interpretasse a cigana Carmen, que seduz o pobre soldado justamente levantando as saias para lavar os pés.

A voz de Callas não era considerada exatamente bonita, mas ela tinha um vozeirão que a gente reconhece logo na primeira palavra e uma amplitude impressionante. Sua técnica é chamada de Bel canto, com longo alcance e interpretação dramática.

No palco, Callas se transformava e parecia possuída, como se uma espécie de mágica acontecesse. Míope, ela não enxergava praticamente nada quando realizava suas performances.

Em entrevista ela explicou sua técnica de interpretação cuja voz, expressão facial e postura corporal compunham o retrato mais preciso da verdade de cada composição. “É preciso ouvir a música com a alma e com o ouvido, a mente deve trabalhar também mas não muito, é com o ouvido e com a alma que você encontra cada gesto”

Uma intuição que vinha também com muito ensaio. Callas era obsessiva com cada segundo de performance e não tinha paciência com colegas de elenco que não mostravam a mesma dedicação que ela. E como quase ninguém estava no seu patamar, a Prima Donna vivia arrumando encrenca. Parece que ninguém suportava trabalhar com ela.

Ficou famosa também a sua rivalidade com outra soprano, Renata Tebaldi. A treta começou quando as duas estiveram se apresentando no mesmo palco, vejam só, no Rio de Janeiro. Para evitar competição, as divas combinaram que não cantariam bis. Mas, empolgada com a animação dos brasileiros, Renata fez dois. Callas cumpriu o combinado e o clima ficou tenso entre as duas. Musicalmente, nem deveriam ser comparadas. Renata tinha um estilo mais lírico e suave, enquanto Callas era mais dramática. Por isso, não costumavam cantar o mesmo repertório.

Aos 34 anos, enquanto ainda estava casada com Giovanni Battista Meneghini, Maria conheceu o magnata Aristotle Onassis. O affair durou 11 anos, até Onassis começar a namorar Jacqueline Kennedy, em 1968.

Ou seja, a vida pessoal de Callas foi outra tragédia grega. O diálogo que eu tive com a minha parça Cássia D’Aquino Filocre resume.

- O que sofreu de amor, pobrezinha. Onassis fazia ela de gato e sapato (disse minha amiga)
- Jackie de concorrência é complicado.
- Já pensou? Vontade de morrer com uma rival dessas.
- Pior que isso, só ter a Marilyn, pensa?
- Happy birthday, Mr President…loira folgada.
- LOL, vou ter que usar isso na crônica.

Bem…voltando a Callas, tadinha, mil vezes tadinha. Além de seu modelo de mulher ser Audrey Hepburn, seu sonho era casar e ter uma família pacata e feliz. Uma vez chegou a revelar que trocaria a carreira por uma vida caseira com filhos e marido, mas que ninguém consegue fugir do seu destino.

Foi na mesma cidade luz onde encontrava-se furtivamente com Onassis que a Diva passou seus últimos anos praticamente em isolamento até morrer de infarto aos 53 anos. (fofocas escritas pela secretária particular do magnata dão conta de que o ex-casal continuou se encontrando às escondidas de Jackie quando o playboy estava de passeio por Paris)

Para brindar La Divina, eu preparei um drinque de gala: Sangria com Pinot Noir local, uma dose de cointreau, suco de meia laranja, pedaços de laranja, maçã, abacaxi, cravos da índia e gelo.

Bravo!

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Renata Kotscho
Bebendo a morta

Médica formada pela UNICAMP, especializada em Medicina Estética pela American Board of Aesthetic Medicine