Não me arrependo de nada

Renata Kotscho
Bebendo a morta
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6 min readApr 9, 2021

Preparem os lenços porque a história da musa de hoje é daquelas tragédias de encher um caminhão de lágrimas. Mas é também uma história de liberdade e de vocação.

Nas palavras dela “eu estava com fome, eu estava com frio, mas eu também estava livre. Livre para não ter que levantar de manhã, livre para não ir para a cama de noite, livre para ficar bêbada quando eu quisesse, livre para sonhar…livre para ter esperança.”

Édith Giovanna Gassion nasceu em 1915, em Paris. Tem uma lenda que ela nasceu nas calçadas da capital francesa, mas parece que é fake news e deu tempo de sua mãe, Annetta Giovanna Maillard, uma frustrada aspirante a cantora, chegar ao hospital do bairro de imigrantes pobres da cidade.

Poucos meses depois do nascimento da menina, sua mãe separou-se do pai, o acrobata Louis-Alphonse Gassion, que agredia, traía e humilhava a esposa e ainda a impedia de trabalhar como cantora.

Assim, os primeiros anos da vida de Edith foram muito conturbados: ela morou pouco com a mãe, que a abandonou com o pai, que não podia cuidar da menina e deixou com a avó materna, que batia e abusava de Edith e não cuidava nem da higiene da pequena.

Por fim, quem melhor cuidou dela na infância foi a avó paterna, uma protituta da região da Normandia que passou a cuidar da menina junto com as suas colegas de bordel. Foi lá que ela recebeu algum carinho da meretriz Titine, que cuidava de Édith como se fosse filha.

Foi nessa época que a menina foi curada de uma queratite que a deixava praticamente cega. As putas levaram a menina até o túmulo de Santa Teresa de Lisieux, a Santa Teresinha. Depois da peregrinação a menina voltou a enxergar o que fez com que Édith se tornasse católica fervorosa dali em diante.

(O crucifixo que usava nas suas apresentações era sua marca registrada junto com o icônico vestido preto.)

Quando a situação financeira do pai melhorou, ele foi buscar a menina, que a contragosto voltou com ele para Paris e passou a frequentar a escola e a ajudar o pai nas apresentações pelas ruas da cidade.

Enquanto o pai fazia acrobacias, ela passava o chapéu e arrecadava dinheiro. Foi por acaso que finalmente descobriu seu talento. Para ajudar o pai a ganhar mais dinheiro, resolveu ensaiar o hino francês, a Marselhesa, e cantar nas ruas. Foi sucesso imediato. Assim que a menina começou a cantar os passantes ficaram embasbacados por sua voz.

A princípio o pai aproveitou o sucesso da menina para faturar, mas quando Edith começou a ganhar dinheiro e independência apresentando-se em clubes da cidade, o pai decidiu proibir sua carreira, como já tinha feito com sua mãe.

Disposta a não abandonar seu sonho de cantora, Édith fugiu de casa e foi morar com uma amiga numa espelunca na periferia da cidade.

Pouco depois se apaixonou pelo entregador de pães Louis Dupont, seu primeiro namorado, e mudou-se para a casa do rapaz. Aos 17 anos engravidou de Louis e teve a filha Marcelle.

Assim como no destino de sua mãe, o até então amoroso namorado começou a humilhar e agredir Édith depois do parto e também proibia que ela continuasse cantando. Naquela época a reputação das artistas não era muito diferente das prostitutas.

Quando Marcelle tinha pouco mais de um ano, Édith fugiu de casa deixando a bebê com o pai. Quando se estabeleceu, 6 meses depois, e tentou voltar para buscar a menina, o pai não permitiu nem que ela visse a criança e a justiça machista da época acabou dando ganho de causa para ele. Ao completar dois anos, Marcelle contraiu meningite e faleceu.

A morte da filha deixou cicatrizes profundas em Édith. Ela entrou em depressão, começou a abusar de drogas e de remédios para dor. Para piorar, ela ainda desenvolveu artrite reumatóide e fibromialgia e sofria com dores fortíssimas.

Mas a sorte de Édith começou a mudar (se é que se pode falar isso no caso da vida dela) quando conheceu Louis Leplée, dono do cabaret Le Gerny ‘s, na Champs Élysées.

Encantado com a voz de Édith, Leplée lhe deu o apelido de La Môme Piaf, “pardalzinho”, uma referência a beleza do seu canto e ao tamanho da musa, uma baixinha de 1.42m.

Foi do apelido que ela adotou o nome que a consagraria: Édith Piaf.

Com Leplée a moça começou a fazer sucesso e a ter o seu talento finalmente reconhecido. Foi também quando gravou o seu primeiro disco. Os dois ainda engataram um relacionamento até que uma nova tragédia bateu à porta da musa.

Um ex-namorado cafetão de Édith entrou no apartamento de Leplée numa tentativa de assalto e acabou matando o empresário. Não se sabe se foi coincidência ou se o ex estava atrás de Édith para vingar-se ou matá-la, mas fato é que mesmo inocente, seu antigo envolvimento com o assassino do seu amante e empresário não fez nada bem para a imagem da carreira da moça.

Mas seu talento prevaleceu e ela continuou fazendo muito sucesso. Mesmo com o início da Segunda Guerra Mundial, Édith não parou de cantar. Durante a ocupação alemã na França ela era convocada para fazer apresentações inclusive para os nazistas. Foi até acusada de traidora, mas acabou inocentada depois que ficou provado que ela ajudava pessoas a fugirem durante as suas apresentações.

A consagração internacional veio logo depois do fim da Guerra quando escreveu seu clássico mais famoso: La Vie en Rose.

Em 1947, no auge do sucesso, passou a atuar também como atriz de cinema e conheceu o grande amor da sua vida. O pugilista franco-argelino e campeão mundial dos pesos médios Marcel Cerdan, considerado por muitos o maior boxeador francês de todos os tempos.

O boy vinha com o kit cidadão de bem, tradicional família francesa, completo: era casado e pai de três filhos.

O que não impediu, claro, dos dois viverem um tórrido romance, cheio de juras de amor eterno. (Mas eu falei que a história de hoje era puxada, não falei?)

Então que quando os pombinhos iam finalmente ficar juntos, o avião com destino a felicidade que Marcel pegou em Nova York para encontrar sua amante em Paris caiu na ilha dos Açores, sem sobreviventes.

Depois de mais essa, a musa se afundou mais na depressão, passou a sofrer também de insônia, além das dores fortes que permaneciam. Ela vivia a base de álcool, opióides e barbitúricos.

Em 1958, como se não bastasse, ela ainda sofreu um grave acidente de carro que quase a matou, ficou um mês internada no hospital e sobraram mais dores como sequela.

Mas nos anos seguintes, Édith ainda teria fôlego para mais sucessos musicais e mais uma série de relacionamentos amorosos conturbados (ela foi realmente insistente nessa coisa de romance). Nenhum digno de nota, com exceção do último, o cabeleireiro e aspirante a cantor Théo Sarapo.

Um moreno alto de origem grega de fechar o comércio, 20 anos mais moço que a musa. Sobre o preconceito (aka, inveja) que o casal gerava ela costumava dizer “Eu não estou nem aí para o que as pessoas dizem, eu não ligo para as suas porcarias de regras.”

Em 1962 lançaram juntos o sucesso “A Quoi Ça Sert L’amour” — Para que serve o amor? (uma das minhas preferidas), no mesmo ano se casaram.

Mudaram-se então para uma mansão enorme com 25 cômodos de frente para o mar onde recebiam os amigos em festas homéricas regadas a muita música e champanhe. Ficaram juntos até a morte de Édith no ano seguinte, aos 47 anos, por complicações de cirrose.

(Théo herdou uma dívida de 7 milhões de francos, uma ordem de despejo da mansão e a fama de aproveitador. Morreu aos 34 anos, 8 anos depois, em um acidente de carro e foi enterrado ao lado de Edith, no cemitério do Père lachaise em Paris)

Para brindar essa mulher lendária eu preparei um Le Forum, drink que dá nome a um dos bares mais tradicionais de Paris, fundado há mais de 80 anos. O Le Forum é um Martini com sotaque francês, além de uma dose e meia de Gim, leva 2 colheres de sopa de Vermute francês e 5 gotinhas de licor Grand Marnier.

Cheers!

(Para quem quiser saber mais de Edith, além de várias apresentações dela no Youtube, vale também o filme de 2007 Édith: Um hino ao amor, com a belíssima Marion Cotillard, na Amazon Prime.)

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Renata Kotscho
Bebendo a morta

Médica formada pela UNICAMP, especializada em Medicina Estética pela American Board of Aesthetic Medicine