Old Fashioned

Renata Kotscho
Bebendo a morta
Published in
3 min readMar 9, 2020

Elis

Na sua última entrevista ela soltou uma de suas frases certeiras. Ao ser perguntada até que ponto era possível uma entrevista honesta ela respondeu “até o ponto que a pessoa queira se desnudar…eu acho que a gente faz parte de um grande teatro, em que cada um tem seu papelzinho e que todo mundo tem um coringa, uma carta na manguinha pra fazer sua canastra na hora precisa…porque ninguém é bobo né, meu bem?”

Nesse grande teatro em que vivemos, que inclui as redes sociais, imagina que delícia não seria jogar um carteado com Elis Regina? Aliás, jogar cartas é uma arte que infelizmente está se perdendo. Mas Elis tem razão: pouca coisa se compara a sensação de baixar uma canastra real na hora precisa. Na era pré-cenozóica, sem tutorial no youtube, eu achava que precisava aprender a jogar Bridge. Acabei tendo que recorrer a um livro de regras e estratégias da minha avó, em alemão. De lá pra cá, minha vida no carteado foi eclética: já fui humilhada no truco e já humilhei no poker. Essa juventude-videogame tem a vida fácil, mas não sabe o que é emoção.

Mas melhor do que jogar carteado com Elis, só jogar carteado fumando um com Elis. Na sua última entrevista a diva estava de cabelo curtinho, charmosíssima, acendia seu cigarro com isqueiro BIC Rosa e batia cinzas no chão do palco. O horror, o horror.

A morte da Elis foi a minha primeira experiência com a morte. Lembro que estávamos no carro com a minha mãe dirigindo, quando anunciaram no rádio e começaram a tocar as suas músicas initerruptamente. Eu tinha 8 anos e foi ali que eu tomei consciência da finitude da vida. Foi quando eu entedi que as pessoas morrem e que um dia meus pais iriam morrer também, meus irmãos, e claro, eu. Fiquei triste um bom tempo e os adultos não entendiam como uma criança podia gostar tanto de uma cantora “de gente grande”. Mas como eu já era meio excêntrica naquela idade, meus pais acharam melhor não contrariar. E toca ouvir O bêbado e o equilibrista, de novo e de novo.

Elis estaria com 75 anos hoje, o que diria do mundo em que vivemos? Tá cada vez mais down the high society.

Achei que Elis gostaria de compartilhar um Old Fashioned, um dos meus drinks preferidos, a base de uísque, angostura, açúcar e uma casca de laranja, pra dar uma bossa.

Cheers!

Ah, pra fechar em mais alto astral, aproveitando que já é quase carnaval, vou deixar um versinho que acho lindo na voz da Elis

🎼
Teu olhar mata mais do que bala de carabina
Que veneno estriquinina
Que pecheira de baiano
Teu olhar mata mais que atropelamento de automover
Mata mais que bala de revorver
🎼

Receita

Old fashioned
Misture um cubo de açúcar (ou meia colher de chá) com algumas gotas de angostura. Macere, enche o copo com uísque, coloque uma pedra de gelo e uma fatia de laranja.

--

--

Renata Kotscho
Bebendo a morta

Médica formada pela UNICAMP, especializada em Medicina Estética pela American Board of Aesthetic Medicine