A Cura | Confissões de Isolamento

Beco do Escriba
Beco do Escriba
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3 min readFeb 1, 2021
Profissional da saúde em reflexão. Arte do conto: Willian Peachazepi | @wpeachazepi
Profissional da saúde em reflexão. Arte do conto: Willian Peachazepi | @wpeachazepi

O sol mal havia nascido quando minha chefe de enfermagem gritou pelos corredores do hospital: “Temos vacina! Temos vacina!” Foi estranho vê-la mostrando freneticamente seu celular como se a própria cura estivesse disponível na manchete do blog de notícias. Rapidamente, a boa-nova se espalhou por todo o plantão e não houve máscaras de tecido ou de acrílico que pudessem esconder tamanha alegria. Porém, tudo que é bom dura pouco e um incidente na recepção nos lançou de volta para realidade desumana de um hospital à beira do colapso.

Quando cheguei no local, vi um jovem bastante agressivo exigindo aos berros, atendimento prioritário ao seu pai, vítima de um AVC. O idoso foi previamente atendido, mas deveria ser transferido para outra casa de saúde, afinal, éramos um hospital 100% focado no tratamento da Covid-19. Porém, o rapaz não aceitou as justificativas e no meio da confusão deu um soco no rosto de uma colega enfermeira que examinava seu pai. Dois seguranças do hospital foram acionados e conseguiram conter o agressor, enquanto seu pai era encaminhado para uma sala mais reservada.

Para sorte da enfermeira agredida, um dos nossos melhores médicos também era especialista em traumatologia e estava de plantão naquele dia. Não demorou muito para ele aparecer e levá-la com cuidado até a enfermaria. Foi quando uma paciente se aproximou, afirmando que o homem que ajudava a enfermeira tinha se passado por doutor e prescrito alguns medicamentos para ela. Achei muito estranho, mas logo percebi que para aquela mulher nenhum diploma ou vocação, seria mais importante do que a cor da pele daquele médico.

O hospital está tomado de gente, não tínhamos mais leitos para internações de coronavírus. Pacientes infectados se acotovelavam nas salas de espera, pelos corredores ou em qualquer cantinho, aguardando atendimento médico ou a própria sorte. Até o necrotério estava lotado de cadáveres, empilhados uns sobre os outros, como num filme de guerra. O mais triste é que nossa guerra contra o vírus era ignorada por muita gente, principalmente por quem só pensava nas próximas eleições. Eu precisava tomar um ar, talvez o frescor da manhã pudesse aliviar o clima de devastação.

Do terraço do prédio era possível ver quase toda a cidade. Sempre que eu me sentia exausta, sem forças ou simplesmente quando queria ficar sozinha, subia até lá. Do topo eu também avistava os bares e os restaurantes, dispostos a oferecer entretenimento a qualquer preço e sem nenhum protocolo de segurança. Em frente ao posto de combustível 24h, muita gente se aglomerava ao redor dos carros: música alta, bebidas e curtição de um pós-balada sem fim.

Às vezes, tenho a impressão de estar em um mundo distópico, paralelo a tudo que está acontecendo. Não é possível que enquanto estamos aqui tentando salvar vidas, há pessoas tão indiferentes do outro lado do quarteirão. Por muitas vezes, encontrei colegas chorando em silêncio, totalmente esgotados, com saudade da família, com medo da contaminação. Porém, o isolamento social é desrespeitado, o uso de máscaras de proteção é ignorado e o vírus virou até motivo de piada. Uma piada sem graça e mortal. Apesar da vacina, ainda continuamos doentes como sociedade e bem longe da cura.

Na verdade, eu só queria que a população entendesse que é preciso ficar em casa, quando possível. Se cada pessoa se imaginasse no lugar de um profissional de saúde na linha de frente, mais vidas poderiam ser salvas. Talvez o meu nome não estivesse no mural de heróis do hospital e eu ainda estaria viva.

Esse conto encerra a minissérie Confissões de Isolamento, que aborda histórias de um cotidiano real ou não durante a quarentena. Que tal ler o conto anterior?

Aproveite e ouça também essa e outras histórias no Podcast Beco do Escriba.

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