Aniversário | Confissões de Isolamento

Beco do Escriba
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4 min readOct 20, 2020
Foto antiga de uma festa de aniversário. Arte do conto: Gabriela Garbelotti | @gabiroba.arte
Foto antiga de uma festa de aniversário. Arte do conto: Gabriela Garbelotti | @gabiroba.arte

À meia-noite daquele sábado, tinha acabado minha primeira festa de aniversário a distância. Um evento virtual, registrado por videoconferência, com muitos emojis, gifs animados, sinal atrasado e tudo o que a internet permitiu. Em um passado recente, neste mesmo horário, eu ainda estaria em casa em dúvidas entre a camisa branca ou a estampada, pulseiras de couros ou semijoias, camarote ou pista. Dilemas de um fim de semana em festa, acompanhados de cerveja ou gin tônica.

Depois de chamar um carro por aplicativo, o próximo passo seria encontrar a turma reunida no barzinho que eu tinha feito reserva com semanas de antecedência. Ao chegar, faria questão de cumprimentar todo mundo e dizer o quanto estava feliz em compartilhar mais um ciclo de vida naquele momento. Sei que muitas pessoas, depois de uma certa idade, não gostam de comemorar aniversário, mas para mim, sempre foi algo muito especial.

Sou do tipo que ajudava a organizar a festinha dos aniversariantes do escritório. Eu amava fazer aquilo. Ninguém era esquecido, mesmo com orçamento mínimo para comprar bolo, refrigerante e uma lembrancinha. Às vezes, eu colocava dinheiro do meu próprio bolso para garantir algum detalhe que faria toda a diferença. Parece loucura, mas muita gente ficava emocionada de verdade com aqueles encontros marcados toda última sexta-feira do mês.

Essa paixão é antiga e está no sangue. Na minha família, todo aniversário era o evento do ano, muito mais importante do que carnaval, réveillon ou até final de Copa do Mundo. A casa dos meus avós era o ponto de encontro para comemorar a data de nascimento de alguém. O auge daquelas festas era o momento do parabéns pra você, cantado à capela do começo ao fim.

Lembro uma vez que a cantoria foi interrompida pelas luzes vermelhas de uma viatura policial. Alguma pessoa da vizinhança, incomodada com o barulho da festa, chamou a polícia. Porém, meu avô tinha um dom natural para transformar os limões em deliciosas limonadas. Depois de muita conversa e boas risadas, as autoridades decidiram ficar e aproveitar a fartura de salgadinhos, docinhos e claro, o bolo da minha avó. Cabo Oliveira e soldado Cunha: penetras oficiais, eternizados na memória e nos álbuns de fotografia. Vale até uma hashtag TBT.

Mas este ano, a festa de aniversário foi diferente também por outro motivo. Além do distanciamento da quarentena, quem mais gostava de celebrar a vida, ficou mais distante de mim. Aquele que contagiava com alegria e alto astral, vai inspirar a todos de outra forma. Seu Luís, era do grupo de risco e apesar de estar em quarentena, jurava que tinha mais medo da solidão do que de um vírus qualquer. Talvez a saudade dos velhos tempos tenha sido cruel demais com seu coração. Meu querido avô morreu durante a pandemia.

Mesmo com todo carinho de quem estava conectado na festinha virtual, sabíamos que faltava a energia positiva que transbordava do Vô Luís. Aquele era o primeiro encontro da família depois de sua morte. Justamente no meu aniversário. Por isso, depois de desligar o computador, escalei o guarda-roupa e peguei uma velha caixa de sapatos tão pesada que parecia estar cheia de joias. Eram álbuns de fotografias, que pra mim, valem mais do que ouro e guardam um pouco da memória de toda família. Passei horas folheando as páginas do passado, vivendo cada momento de novo como se fosse a primeira vez.

O mais curioso é que na manhã seguinte, percebi que um álbum estava caído no chão, entreaberto justamente em uma foto instantânea, tipo Polaroid, da minha festa de 10 anos. Nesse dia ele me disse: sempre que sentir saudade, liga pro vô e me entregou a fotografia. No verso, ainda tinha a data, uma dedicatória e o antigo telefone da casa dos meus avós. Sabia que aquela linha telefônica tinha sido há muito tempo negociada, e talvez nem existisse mais. Ainda assim, peguei meu celular e digitei a combinação de números da época.

Comecei a transpirar pelo simples fato da ligação estar chamando e no terceiro toque já aguardava trêmula a mensagem automática de que o número de telefone não existia. Estava prestes a desligar, quando de repente, alguém do outro lado atendeu dizendo apenas: feliz aniversário.

Esse conto faz parte da minissérie Confissões de Isolamento, que aborda histórias de um cotidiano real ou não durante a quarentena. Que tal ler o conto anterior?

Para ouvir essa e outras histórias, conheça o Podcast Beco do Escriba.

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