Brisa | Confissões de Isolamento
Para muitas pessoas, a vida seria um tédio sem a companhia de nossos melhores amigos de quatro patas, principalmente nesses tempos de isolamento social. Em casa, somos apaixonados por cachorro. Desde que eu me conheço por gente, temos companheiros caninos por perto e sempre tem um animal mais especial. E Brisa, uma típica vira-lata caramelo, era extraordinária.
Meu pai conta que encontrou a cachorrinha perambulando pelas ruas do centro da cidade. Ela estava suja, desorientada e cambaleava a cada passo que dava, como se o próprio vento a pudesse derrubar. A cena chamou tanto a atenção que inspirou seu nome. Quando papai chegou em casa com a cadelinha nos braços, foi amor à primeira vista. Na época, meu irmão mais novo, em poucos dias, compartilhou sua cama, seus brinquedos e até sua comida com a mascotinha da família.
Com o passar dos anos, os laços daquela irmandade inusitada ficaram ainda mais fortes. Brisa era uma sombra do meu irmão. Lembro quando ela seguiu sua van escolar e ficou deitada por horas em frente ao portão do colégio, como se fosse uma estátua de cera em exposição, à espera de seu visitante ilustre. Coincidência do destino ou não, justamente naquele dia, alguns garotos cercaram meu irmão na saída. A cachorra rosnou alto e botou os valentões para correr.
De fato, meu irmão amava muito Brisa. Certa vez, ela teve uma grave infecção bacteriana e ficou internada por quase duas semanas. Em todos os dias de internação, ele passava no hospital veterinário em vez de ir direto ao estágio-aprendiz. Depois de tantos atrasos e justificativas esfarrapadas, a empresa optou por sua demissão. Meus pais sempre voltam a lembrar desse episódio, mas com a chegada da pandemia as histórias não tiveram mais graça. Meu irmão foi infectado e acabou falecendo, vítima do coronavírus.
O mais estranho é que mesmo depois de sua morte, Brisa seguiu a rotina de todo santo dia. Do quintal dos fundos, latia esperando alguém abrir a porta de acesso à cozinha, caminhava até o quarto dele e perto do tapete ao pé da cama, girava algumas vezes antes de se deitar. Em seguida, uivava na direção do leito vazio até adormecer, vencida pelo cansaço e pela tristeza. Seu luto era tão verdadeiro quanto perturbador.
Hoje, um mês depois da morte do meu irmão, encontrei Brisa no quarto, deitada, em um sonho do qual ela não vai mais acordar. Enfim, eles estavam juntos novamente.
…
Esse conto faz parte da minissérie Confissões de Isolamento, que aborda histórias de um cotidiano real ou não durante a quarentena. Que tal ler o conto anterior?
…
Para ouvir essa e outras histórias, conheça o Podcast Beco do Escriba.