Má Companhia | Confissões de Isolamento

Beco do Escriba
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2 min readMay 29, 2020

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Garota reflexiva. Arte do conto: Gabriela Garbelotti | @gabiroba.arte
Garota reflexiva. Arte do conto: Gabriela Garbelotti | @gabiroba.arte

Os dias em casa estão me fazendo muito mal. Nunca pensei em dizer isso, sempre fui uma pessoa caseira, daquelas que trocava qualquer saidinha por um evento em domicílio. Hoje faria qualquer coisa para estar longe daqui, desse lugar. O mais difícil nessas semanas em isolamento não é o perigo do lado de fora. Para mim, o mais apavorante é a ameaça que vive dentro da minha própria casa.

Sempre gostei de manter uma rotina. Eu era do tipo que toda manhã arrumava a cama com a perfeição de uma camareira de resort. À noite, cuidava de mim: perfumes e hidratantes; drinks ou chás; filmes ou livros. Depois da sua chegada, tudo mudou. Me sinto um caco, sem forças e nem coragem para ser apenas eu. Meu dia a dia agora é acompanhado de um nó na garganta sempre que sinto sua presença.

Com a pandemia, muitas empresas adotaram o home office e no meu caso não foi diferente. Além da jornada de trabalho, do salário, a minha privacidade também foi reduzida. Sinto alguém me observando o tempo todo e qualquer ruído me faz suar frio. É chato ficar em alerta, imaginando mil e uma formas de fugir da situação. O pior é que isso tudo está refletindo na minha produtividade, ou seja, não consigo trabalhar direito.

De vez em quando, eu preciso ir ao mercado, padaria e farmácia para repor as coisas essenciais de casa. Com máscara de pano e luvas de látex, enfrento as ruas vazias de um novo mundo que estamos assistindo nascer. O pouco tempo que passo fora de casa é o suficiente para me sentir livre da minha própria prisão.

Mas o que é bom dura pouco. Assim como nos contos de fada em que à meia-noite a carruagem vira abóbora, ao subir o elevador do meu prédio, sinto a negatividade de quem me espera. Mesmo com as mãos cheias de sacolas, procuro abrir a porta com cuidado, caminhar devagar e desinfetar tudo sem pressa, justamente para não fazer barulho. Mas não adianta, quando menos espero, o ar sufocante invade o ambiente e eu me arrepio dos pés à cabeça.

Não é fácil passar uma quarentena inteira em má companhia, que me esgota lenta e dolorosamente. Será que a culpa é minha? Alguém vai acreditar em mim? Sou eu quem precisa mudar? São tantas perguntas sem respostas que, muitas vezes, duvido da minha própria sanidade.

Há um ditado famoso que diz “os incomodados que se mudem”. Isso vale para quem mora só, como eu?

Esse é o primeiro conto da minissérie Confissões de Isolamento, que aborda histórias de um cotidiano real ou não durante a quarentena. Fique ligado nos próximos episódios.

Enquanto isso, confira outras histórias no Beco do Escriba.

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