Novo Mundo | Confissões de Isolamento

Beco do Escriba
Beco do Escriba
Published in
3 min readJul 12, 2020
Placa da Lei Antitoque do ano 9 p.C (pós-Coronavírus). Arte do conto: Gabriela Garbelotti | @gabiroba.arte
Placa da Lei Antitoque do ano 9 p.C (pós-Coronavírus). Arte do conto: Gabriela Garbelotti | @gabiroba.arte

A humanidade ainda vive à sombra da maior pandemia do último século. Após diversas tentativas de isolamento social, inúmeras ondas de contaminação e milhares de mortes, um novo mundo nasceu. Hoje, dia 12 de julho do ano 9 p.C. (pós-Coronavírus), ainda estamos em quarentena e em busca de uma vacina.

Com o passar dos anos, o Estado na tentativa de controlar e diminuir a transmissão da doença, impôs diversas medidas radicais. Bloqueios de fronteiras, toques de recolher, multas pesadas, monitoramento privado e, talvez, a mais absurda de todas: restrição total ao contato físico. Sim, no novo mundo é proibido tocar nas pessoas. Uma violação grave, considerada ameaça terrorista mesmo entre amigos, familiares, casais ou pais e filhos.

Semanas antes da proibição oficial, as maiores cidades do país se encontravam divididas. Muitas pessoas desrespeitavam as medidas de confinamento, uma minoria fazia o possível para ficar em casa e outros grupos saiam às ruas em manifestações prós e contra o governo. O tumulto mais violento da época aconteceu durante um protesto contra o aumento do preço do álcool em gel. Um evento organizado pelas antigas redes sociais e marcado pela violência, quebra-quebra e centenas de prisões. A data ficou conhecida como “Noite do Alquingel”.

Desde então, o que era absurdo logo se tornou o nosso cotidiano. A repressão das autoridades, o individualismo e o medo do contágio estremeceram ainda mais as relações sociais que já eram fragilizadas. Atualmente, um simples espirro dentro do seu quarto pode ser denunciado pelo vizinho e sua casa interditada por suspeita de ser um epicentro local. Você pode ser multado ou até preso por não usar máscara ao sair pegar as correspondências. Todos somos hospedeiros e suspeitos ao mesmo tempo.

Vivemos em constante ameaça de novos surtos de outras doenças, terrorismo biológico e os chamados Ciclos Programados de Vacinação (CPV), em que apenas as classes que controlam o sistema tem o direito de testar as vacinas desenvolvidas. O resto da população ou se adapta às condições limitadas ou morre sem expectativas de cura. Além disso, diariamente, os meios de comunicação controlados pelo governo divulgam os mais recentes estudos de imunização e reforçam o cumprimento da lei antitoque.

Em casa, as coisas não são nada animadoras. O distanciamento é tão mortal quanto o próprio vírus. Há anos não posso abraçar meus pais que vivem isolados em uma edícula no fundo do terreno, como se estivessem apenas esperando o pior acontecer. Às vezes, observo minha esposa reclusa em seu próprio universo tentando entender como chegamos a essa realidade tão distorcida, fora do comum e cheia de culpa. Meus filhos são da Geração Baby Cooviders, as últimas crianças nascidas antes do novo mundo, alfabetizadas a distância e indiferentes a qualquer sentimento.

Sinto saudades do velho normal e fico imaginando o quanto éramos felizes e mais próximos uns dos outros. Afinal, viver afastado de tudo o que mais amamos é uma sentença de morte. Lenta. Antisséptica.

Esse conto faz parte da minissérie Confissões de Isolamento, que aborda histórias de um cotidiano real ou não durante a quarentena. Que tal ler o conto anterior?

Para ouvir essa e outras histórias, conheça o Podcast Beco do Escriba.

--

--