O Influenciador | Confissões de Isolamento

Beco do Escriba
Beco do Escriba
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3 min readNov 9, 2020
Um homem no celular. Arte do conto: Gabriela Garbelotti | @gabiroba.arte
Um homem no celular. Arte do conto: Gabriela Garbelotti | @gabiroba.arte

Em março de 2020, ele conquistou 150 mil seguidores em sua principal rede social e se tornou um dos influenciadores digitais mais famosos do país. Seu canal tinha opiniões estúpidas, disseminação de fake news e apoio fanático aos movimentos que ignoram as descobertas científicas e negam a pandemia do coronavírus. Mesmo não concordando com nada daquele universo tóxico, aceitei trabalhar em sua equipe como analista de mídias sociais. Estava desempregado há meses e atolado em dívidas.

Entre likes e deslikes, ele ganhou relevância na internet e queria comemorar sua conquista. Assim, quis dar uma festinha em sua casa, só para um pequeno número de familiares e alguns amigos íntimos. Fui escalado para ajudar nos preparativos do evento. No entanto, quando fomos ao supermercado comprar bebidas e petiscos, percebemos o quanto as pessoas estavam preocupadas com aquela doença misteriosa e ainda desconhecida. Para ele, tudo não passava de histeria popular.

Naquele dia, ele até gravou um storie, afinal, tinha sido barrado no supermercado. Me lembro da gerente, dizendo que ele não estava usando uma máscara de proteção apropriada e que não poderia entrar no local. Porém, a webcelebridade em fúria não deixou barato: com o smartphone na mão, perguntou se eles sabiam com quem estavam falando! Além dessa atitude desrespeitosa, ele ainda convidou sua legião de fãs a boicotarem os comércios que adotassem tais medidas de prevenção e combate ao vírus. Um vídeo venenoso que teve centenas de visualizações.

No fim de semana seguinte, mesmo com a quarentena decretada em todo estado, ele deu sua festinha particular. Fiquei sabendo que teve DJ, bartender, buffet completo e tudo que o dinheiro poderia comprar. Entre os convidados, muita gente que compartilhava as mesmas “verdades” sobre a pandemia: sensacionalismo da mídia, jogo político, exagero chinês, etc. Tudo mudou quando o segurança do condomínio apareceu na porta de sua casa, informando que os vizinhos estavam reclamando do som alto da festa.

Me contaram que ele ficou louco de raiva, xingando toda a vizinhança e gritando que aquele lugar não estava a sua altura. Além disso, ele se recusou a diminuir o volume do som. Não demorou muito para a polícia chegar e encerrar de vez a festinha. Porém, a situação que já era ruim ficou pior: todo barraco tinha sido filmado e vazado na internet. O ataque de no condomínio caiu como uma bomba em suas redes sociais. Em 1 semana, ele perdeu centenas de seguidores. Tínhamos muita sujeira para limpar.

Em reunião, decidimos que uma LIVE de desculpas seria o melhor para sua imagem. Era uma oportunidade para esclarecer a situação com o público e preservar alguns patrocínios. Justo no dia da gravação, o influenciador mais odiado do momento teve febre, tosse seca, dores e desconfortos. Eu suspeitava daqueles sintomas, mas ele acreditava que eram apenas sinais de uma gripe forte. A LIVE foi cancelada e eu publiquei uma nota oficial.

Depois daqueles dias em baixa, o que ele mais queria era relaxar em um barzinho com os amigos e então: lockdown! Em menos de 300 caracteres, fez duras críticas à nova política de quarentena adotada pelo governo. Afirmou em “caixa alta” que o lockdown era totalmente errado e acabaria com a vida noturna da cidade. Foi parar nos trending topics, usando a #DevolvamMeuBoteco.

Foi aí que as coisas ficaram mais sérias e tudo piorou depois do feriado prolongado. Diarreia, falta de ar, dores fortes no peito e dificuldades para falar, assustaram para valer o influenciador. Mesmo com sintomas graves, ele jurava que era apenas uma virose passageira e não quis ser levado ao hospital. Tarde demais. Morreu sozinho em sua casa, às 22h20. Causa: COVID-19.

Meses depois de sua morte, um storie foi publicado em sua rede social. Era um vídeo estranho, escuro, de som distorcido: NÃO ERA COVID! NÃO ERA COVID!

Muita gente me perguntou o que eu estava aprontando, afinal, eu trabalhava com as mídias sociais do influenciador. O mais estranho é que todas as contas foram desativadas depois do seu falecimento. Às vezes, nem mesmo a morte consegue silenciar um mentiroso.

Esse conto faz parte da minissérie Confissões de Isolamento, que aborda histórias de um cotidiano real ou não durante a quarentena. Que tal ler o conto anterior?

Para ouvir essa e outras histórias, conheça o Podcast Beco do Escriba.

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