Sequela | Confissões de Isolamento

Beco do Escriba
Beco do Escriba
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3 min readDec 22, 2020
O vulto de uma criança. Arte do conto: Gabriela Garbelotti | @gabiroba.arte
O vulto de uma criança. Arte do conto: Gabriela Garbelotti | @gabiroba.arte

Depois de 40 dias sedado e entubado em um Centro de Tratamento Intensivo, superei as complicações da Covid-19. Um momento difícil que mexeu comigo, afinal, minha própria falta de cuidados com o vírus me colocou entre a vida e a morte. No entanto, foi justamente a partir dessa experiência que minha vida mudou para sempre. Lembro-me que, ao despertar da sedação, ainda com os pensamentos se misturando aos efeitos dos medicamentos, avistei uma menina parada na porta, me olhando. Era uma criatura lúdica, repleta de cor: verde e vermelho; laranja e azul, algo que destoava da realidade crua e hospitalar. Achei estranho uma criança sozinha no CTI, mas acenei para ela, que respondeu com um sorriso e saiu correndo pelo corredor.

Apesar de ter sido transferido para uma ala isolada do hospital, destinada aos pacientes em recuperação do coronavírus, coisas estranhas continuaram acontecendo. À noite, era impossível dormir com tanto choro, ruídos e gritos, que eu não sabia de onde vinham, mas me arrepiavam dos pés à cabeça. Por diversas vezes, alertei meus familiares e a equipe médica sobre os episódios, mas sempre tinham as mesmas explicações: estresse pós-traumático, cansaço mental, distúrbios da idade. Até os próprios médicos ignoravam meus relatos. Eles apenas diziam que eu nasci de novo, aos 65 anos. Eu era um verdadeiro milagre.

Dádiva ou não, algo aguçou minha sensibilidade, capaz agora de sentir manifestações e a energia dos ambientes. No dia em que recebi alta, enquanto arrumava minhas roupas na bolsa, percebi a chegada da mesma garota que tinha me visitado no CTI. Parada na porta do quarto, sem dizer uma só palavra, ela sorriu e me estendeu a mão, como se quisesse me acompanhar até a saída da clínica. Recuei e fechei os olhos tentando enganar minha consciência, mas sua presença era mais forte que tudo.

Já em casa, ainda em processo de reabilitação, os fenômenos seguiram me assombrando. Muitas vezes, escutava estalos na parede, portas sendo arranhadas, passos arrastados pela casa e até alguém chamando por meu nome, como se quisesse me levar do mundo dos vivos. Eu já vivi muita coisa ao longo da vida, mas nunca tive experiências como aquelas. Pesquisei sobre o assunto na ‘internet’, li alguns textos bíblicos e até redescobri a prática da oração. De alguma maneira, precisava entender o que estava acontecendo comigo, se não, me internariam de novo, dessa vez, em um hospital psiquiátrico.

Foi então que numa manhã de sábado, entre um gole de café e outro, enxerguei uma velha conhecida se aproximando da entrada dos fundos. A criança do hospital estava em casa, comigo. De longe, ela sorriu, acenou e apontou para a porta. Imediatamente, fui recebê-la de braços abertos e ao abrir, fui surpreso por Aparecida, minha vizinha da casa ao lado. A mulher sabia que eu estava de volta e apareceu com um balsâmico bolo de fubá, meu favorito.

Apesar da rotina agitada, Aparecida estava sempre disposta a ajudar o próximo. Ela dizia que eu lembrava seu falecido avô, por isso, tinha um carinho especial por mim. Em casa, minha vizinha percebeu que algo me incomodava, afinal de contas, já nos conhecíamos há muitos anos. Logo, criei coragem e contei o que estava vivendo nos últimos dias. Sem questionar se aquilo era verdade ou alucinação, Aparecida me levou até uma instituição de tratamento espiritual.

No local, descobri que após sobreviver ao vírus desenvolvi uma condição rara de percepção extra-sensorial, envolvendo clarividência e telepatia. Um fenômeno mundial com algumas dezenas de pessoas na mesma condição de se comunicar com os mortos e outras entidades ocultas. O mais espantoso era que todos nós, sobreviventes-sensitivos, como éramos chamados, tivemos a mesma visão lúdica em comum: crianças multicoloridas.

Esse conto faz parte da minissérie Confissões de Isolamento, que aborda histórias de um cotidiano real ou não durante a quarentena. Que tal ler o conto anterior?

Para ouvir essa e outras histórias, conheça o Podcast Beco do Escriba.

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