Sonhos Ruins | Confissões de Isolamento

Beco do Escriba
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3 min readJun 22, 2020

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Cabeças de bonecas flutuando em uma piscina. Arte do conto: Gabriela Garbelotti | @gabiroba.arte
Cabeças de bonecas flutuando em uma piscina. Arte do conto: Gabriela Garbelotti | @gabiroba.arte

Quero dormir. Isso mesmo, quero dormir profundamente sem ser incomodado por sonhos ruins. Parece estranho, mas depois de tantas noites mal dormidas durante a quarentena, meu único desejo é descansar. É assim: sobressaltos, calafrios, gritos, pijama e lençol molhados de suor. Normalmente, acordo com dores pelo corpo, além de um cheiro forte e metálico impregnado no nariz.

Esses sonhos ruins também têm sabor. Certa noite, imaginei que estava nadando em uma piscina. Depois de algumas braçadas, reparei que a água tinha ficado turva e cheia de coisas pegajosas. A cada movimento, eu trombava naqueles objetos estranhos. Quando consegui subir para respirar, estava cercado por cabeça de bonecas. Algumas delas tinham a boca costurada, cabelos emaranhados, outras sem olhos, sujas e amassadas. O curioso é que todas as bonecas tinham um rosto familiar. Acordei com as pupilas dilatadas e um gosto amargo na boca.

Às vezes, os sonhos ruins ganham cor. As imagens e cenas na minha cabeça são carregadas de tons claros e escuros que se misturam conforme a intensidade dos fatos. Uma vez, delirei que estava no alto de uma colina admirando um lindo pôr-do-sol. Abaixo do campo, havia um grandioso pomar com galhos carregados que quase tocavam o chão. Toda paisagem era quente e vibrante. No entanto, quando me aproximei das árvores, percebi que as raízes estavam secas, os frutos podres e repletos de moscas. Uma natureza morta, intensamente escura e fria.

Muita gente diz que sonhar com morte não é legal. Sei que há vários significados e superstições sobre o assunto, alguns até positivos, mas admito que imaginar essas coisas dormindo é perturbador. Em certas ocasiões, sonho com lugares completamente solitários, cavernas profundas em que as paredes de pedra dão lugar a formações derretidas, como uma versão grotesca dos quadros de Dalí. Me sinto sozinho no meio dessa desolação silenciosa, árida e sem vida. Para mim, é a própria morte.

Outro sonho inquietante que me assombra se passa em um galpão, instalado em uma área cercada por muros, arame-farpado e vigiada por baratas. Milhares desses insetos ficam perambulando constantemente pelo local, devorando as pessoas que tentam fugir. É uma experiência bastante incômoda, já que me vejo paralisado, impotente de medo, sem poder ajudar ninguém.

Ao longo desses meses de isolamento, procurei alternativas para voltar a dormir bem. Criei hábitos em casa, mudei a alimentação, comprei uma cama melhor e até instalei um ar-condicionado no quarto. Nada funcionou. Remédios artificiais, caseiros ou naturais nem fizeram efeito. Talvez seja melhor aceitar essa minha nova condição e conviver em harmonia com meus demônios noturnos.

Em compensação, sei que esse vírus está tirando o sono de muita gente. Alguns gurus afirmam que a mudança na rotina, o excesso de informações e outros fatores causaram um trauma coletivo. As pessoas estão enlouquecendo sem perspectivas de como será o amanhã. O que me deixa mais confuso, afinal, a realidade pode ser um pesadelo muito pior.

Esse conto faz parte da minissérie Confissões de Isolamento, que aborda histórias de um cotidiano real ou não durante a quarentena. Que tal ler o conto anterior?

Para ouvir essa e outras histórias, conheça o Podcast Beco do Escriba.

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