(Des)Motivado

“Andava para lá e para cá, sem rumo, esperando que alguma coisa acontecesse. QUALQUER COISA, só para quebrar a chatice que minha vida e minha rotina haviam se tornado.”

A ~
Beliefs — Tales of Broken Heroes

--

Com um súbito solavanco, me acordei. Muito de repente. Bastante suado e com a cabeça doendo, olhei ao meu redor, procurando nem eu sei muito bem o quê. Talvez alguma coisa fora do comum, quem sabe? É… me parecia apropriado.

Levantei-me e fui em direção ao pequeno banheiro, anexo ao meu quarto escuro e bagunçado, e me olhei no espelho: um rapaz com profundas olheiras, cabelo bagunçado e cara de poucos amigos me olhou de volta.

“Ah, que ótimo”.

Fui até a cozinha procurar algumas cervejas: nada. Apenas garrafas vazias espalhadas pelo chão, alguns discos de vinil jogados em cima da mesa e algumas roupas amassadas.

Dali, andei até a sala, e, já meio perdido, sentei no sofá, enquanto buscava compulsivamente um maço de cigarros que sabia ter deixado por ali mais cedo…

A questão é que, para ser sincero, eu andava desmotivado. Minha casa, antes impecável, um brinco, estava agora à mercê da minha desorganização; minha aparência, antes uma prioridade, havia sido deixada de lado; minha vida, antes perfeita, estava agora andando aos trancos e barrancos, me levando para a desgraça.

E tudo por causa… dela. De sua partida.

Eu sabia que tinha sido um idiota por ser ciumento demais, mas simplesmente não poderia deixá-la livre. Algo apertava meu coração, uma desconfiança pulsava em mim cada vez que era obrigado a vê-la ir para as aulas da faculdade, pois, no fundo eu sabia que, uma hora, ela acharia alguém melhor.

Não que eu não fosse bom. Pelo contrário, era excelente. Destaque em tudo o que eu fazia, sempre em dia com a moda, um tanto quanto popular. O sonho de qualquer garota.

Acontece que, para mim, aquilo tudo era descartável, desnecessário. Ou pelo menos passou a ser depois que eu a conheci. Ela. De novo ela. Meu grande amor, minha grande decepção.

Na verdade, eu sempre fui um tanto instável. Se agora algo está bem, nada impede que em cinco minutos tudo possa desmoronar. E meu problema sempre esteve no fato de ser impulsivo e não saber lidar com essas mudanças de humor. Eu podia muito bem ser o cara mais agradável do mundo, mas não dava para negar que tinha um lado desequilibrado e decididamente louco.

Sempre havia sido assim, com qualquer coisinha. Não foi uma nem duas coisas que já quebrei em um de meus ataques. Acontece que, como dizem, “quanto maior o voo, maior a queda”; pois bem, com ela foi igual: era meu maior tesouro, portanto, era o que eu defenderia com unhas e dentes, mesmo que isso viesse a representar alguma briga feia.

Pois eu acho que sabia, em meu inconsciente, que algo assim iria acontecer, esta “briga feia”, e confesso que poderia ter me esforçado mais para evitar. Na verdade, acho que este é o meu fantasma, a dúvida que me assombra toda noite: tudo o que aconteceu poderia ter sido evitado?

Mas o que aconteceu? Bom, na realidade nunca cheguei a saber direito. Só sei que aconteceu, e, segundo ela, foi por conta desse meu hábito ciumento de ser.

A questão é que, quando você vê seu bem mais precioso na mão de outro rapaz, você sente vontade de pegá-lo de volta para você à força, não é? Pois bem, foi o que eu fiz, mas juro que o fiz com a melhor das intenções!

Começou com um tal de Rupert, um colega de faculdade do meu “bem mais precioso”. Esse Rupert sempre me pareceu inocente e até bem intencionado quando começou a se aproximar dela, tanto que realmente não me importei em chamá-lo para jantar conosco algumas vezes.

Seu pai monopolizava a indústria de tecidos aqui dos arredores, mas ele não me parecia muito disposto a seguir o mesmo rumo; não, com seu óculos de fundo de garrafa e seus cabelos pretos sempre arrumadinhos, decididamente era mais voltado para a área de engenharias. Isso até foi uma das razões pela qual conheceu a minha preciosa: ela buscava qualificação para lecionar matemática, e os dois frequentavam algumas cadeiras em comum.

A amizade começou quando ela precisou de ajuda com alguns conteúdos, e então ele se dispôs a auxiliar. Assim, tiveram um primeiro contato. Ela me contou abertamente, e confesso que fiquei muito enciumado logo de cara, ainda mais porque eu próprio não havia conseguido ajudá-la. Porém, assim que ela me mostrou o rapaz, Rupert, eu logo soube que ele nunca teria chances com a minha amada, e então permiti numa boa que viesse até nossa casa, inclusive, para estudar com ela.

Assim passou o primeiro semestre da faculdade dela. Ele, surpreendentemente, tinha muita paciência e jeito para ensinar. Havia se tornado um grande amigo, e eu não tinha problema em admitir que era o principal responsável pelos bons resultados de minha amada. Estava tudo numa boa, pelo menos até a festa no Grêmio estudantil do campus...

Aquele dia mais cedo, eu e ela havíamos tido, de longe, a nossa pior briga. Na verdade, fora a única; as outras sequer passaram de discussões “inflamadas”. Mas aquele dia, não. Aquele dia foi para valer.

Eis que eu havia chegado de meu trampo, já meio cansado, mas nem por isso me recusando a acompanhar a minha amada à festa. Enquanto eu fazia uma refeição rápida, ela foi ao quarto (sim, o mesmo quarto escuro e bagunçado que já teve dias melhores) arrumar-se.

Quando acabei, fui dar uma espiadinha para vê-la, e eis que ela estava em frente ao espelho com uma roupa tão provocante que, na mesma hora, conseguiu me incomodar. E, olhando seu reflexo por cima do ombro, pude notar que ela abriu um sorriso ao me ver e teve a coragem de perguntar o que eu achava de ela ir vestida daquele jeito. Admito que gritei com ela, logo de cara, pois foi como se alguma fera tivesse despertado de vez em meu interior.

Disse coisas que talvez não quisesse ter dito, mas na hora não pude refrear as acusações que saíram da minha boca: “Você anda transando com Rupert, não é mesmo? É por isso que ele tem ajudado você! Pois bem, quer ir assim, que vá, mas vá sozinha, e veja se aproveita junto com ele!”.

Na hora, ao ver seu sorriso murchar no espelho, tive uma imediata satisfação, que só aumentou ao vê-la sair de casa aos prantos; afinal, eu não havia tido um dos melhores dias no trabalho e ela precisava entender que não ia aceitar numa boa que ela se mostrasse “demais” para os outros.

Sentei-me numa boa no sofá, decidindo que precisava curtir um baseado para me acalmar. Cá com meus botões, eu achava impossível que ela e Rupert tivessem um caso; talvez por isso eu realmente tivesse deixado ela ir sozinha à festa. Era minha e eu duvidava que a fosse perder.

Rupert era um otário, eu acabara de decidir. Sim, um tremendo idiota. Ensinava para ela pela mera esperança de um dia levá-la para a cama, mas eu, e somente EU, era quem a levava para a cama, quando quisesse, do jeito que quisesse.

Tal pensamento me animou tanto que dei uma risada alta, e, assim que terminei o baseado, caí num sono leve e sinceramente sem preocupações.

Mas a vida, ah, a vida… a mesma vida que um dia me trouxe para perto da minha amada, foi também a vida que me fez acordar na hora certa aquela noite para ver o que eu tinha de ver…

Já devia ser umas duas horas da madrugada, e um barulho irritante começou em meu sonho. Comecei a me revirar até voltar à consciência lentamente. Então percebi que não havia barulho algum, apenas uma dor estupidamente forte em meu estômago. “Ah, a maldita ritalina”.

Levantei-me na hora! Com um solavanco, quase caí de novo após vomitar em mim mesmo. Muito tonto e me sentindo febril, me dirigi trôpego até a janela mais próxima e a escancarei para tomar um ar.

Demorei para perceber os dois vultos abraçados na calçada, bem em minha direção, iluminados pela luz alaranjada do poste. Ela, de salto, com uma roupa extremamente provocante; ele, um pouco curvado e quase mais baixo que ela, envolvidos em um ato de carinho, inconscientes à minha presença.

Foi como uma pane em minha mente: NÃO! Eram eles! Eu não iria deixar assim! Algo me dizia insistentemente que devia matá-lo, e, seguindo este meu instinto, me dirigi cambaleando até fora da casa. Aparentemente, os dois perceberam o movimento, ainda que um tanto longe, pois se separaram a ficaram a me fitar, ela um tanto soluçante, ele, hesitando.

Sem pestanejar, tentei correr até eles, agora decididamente urrando de ódio. Eu precisava matá-lo para mostrar a ela o que acontecia com quem me desobedecia. Ambos gritaram algo com estarem apenas se abraçando enquanto eu me aproximava, ela decididamente à beira das lágrimas novamente. Mas eu ignorei. Sabia que era mentira. E foi por isso que avancei diretamente até ele, ainda meio entorpecido, com os punhos erguidos e berrando minha raiva.

Nunca soube direito como aconteceu, mas de repente me vi no chão, sangrando e com muita dor. Rupert, curvado, me encarava do alto com os punhos fechados, e, um pouco atrás dele, me observando com repugnância e tristeza… ela.

Acho que tentei me levantar, mas estava chapado. Não consegui me mexer. Tentei xingar, mas minha boca não obedecia minhas ordens. Então apenas fiquei deitado, com a percepção de que acabara de apanhar para um otário em frente à minha própria casa, invadido pelo desgosto e pela dor. Eu havia perdido.

Não sei quanto tempo fiquei lá, nem se cheguei a dormir, desmaiar ou até mesmo morrer. Sei que quando recuperei a consciência, quando voltei à vida, me encontrava já sem dor, em minha cama, com a barba por fazer.

Um rosto ligeiramente mais magro do que eu me lembrava me encarou de volta do espelho quando finalmente consegui levantar-me para me olhar. Mas, sob outros aspectos, eu continuava bem.

Um pouco confuso, demorou um pouco para as lembranças daquela noite (e digo “aquela noite” por não ter mesmo nenhuma noção de quanto tempo se passou) irem aflorando à minha mente.

Invadido pelo desgosto e por súbita vergonha, caminhei até a sala. Tudo estava arrumado, mas não havia sinal de mais ninguém por lá. Voltei ao quarto num frenesi e abri as portas de meu grande guarda-roupa: somente as minhas peças, o resto deixado vazio.

Recusando-me a crer no que estava vendo, e um tanto atordoado, corri até a sala, já em desespero, chamando pela minha amada. Nada! Então, minha atenção foi atraída para um bilhete em cima da mesinha de centro: era, sem dúvida, a letra dela. No começo, tive dificuldade para focar os olhos, mas depois consegui ler a curta mensagem sem maiores problemas:

“Você fez isso consigo mesmo. Espero que entenda que nunca fiz nada do que você acusou, mas estou me afastando de você para que não fique tentada a fazer. Eu te amo e você sabe disso.”

Com minhas mãos tremendo convulsivamente, comecei a suar e, sem pensar, rasguei o bilhete com um urro. “Porra!”

Porém, pela primeira vez na vida, consegui fechar os olhos e verdadeiramente me acalmar. Com lentidão, me recostei no sofá, inspirando profunda e ruidosamente, e me pus a refletir.

Ela estava certa. Eu a havia perdido justamente pelo medo que tinha em perdê-la. Não havia o que dizer. Eu não sabia direito o que tinha feito, mas estava feito e não havia como voltar atrás. Agora, era minha obrigação fazer com que aquilo tudo se tornasse algo bom para mim; eu precisava de um aprendizado.

Então, peguei meu diário, meu baseado… e escrevi isto aqui. Porra, eu sou um herói. Um herói anônimo.

--

--