De palavras e enigmas
O mistério,
o calafrio,
a sensação,
o espírito,
o “frágil e minúsculo corpo humano”,
a gente,
o todo: tudo
tão simples, tão difícil ser dito.
— Como você se sente?
— Não sei. Pergunta difícil.
Hoje tive um dia difícil sabe aconteceu tanta coisa
… … …
— E como você se sente?
— É complicado.
O que cantam as sereias?
O que dizem as deusas e os santos?
Que língua falam?
Com o enigma da língua há o enigma da etnia,
com o enigma da etnia há o enigma da raça,
com o enigma da raça há o enigma do sexo,
com o enigma do sexo há o enigma do trabalho,
com todos esses há o enigma do novo mundo.
Muitas palavras envolvem o enigma.
Poucas palavras resolvem o enigma.
“Bastariam só quatro palavras para a Sagrada Escritura”.¹
(Para o povo analfabeto,
aprender a ler e escrever seu próprio nome
pode ser um passo importante para a libertação;
para “que se descubram
como Pedro,
Antônio,
como Josefa,
com toda a significação profunda que tem esta descoberta”.²
Para Menocchio — um exímio tagarela — ,
em quatro palavras se bastariam as leis divinas.)
Que palavras?
— “Decifra-me ou devoro-te!”
a Esfinge te lança um enigma; se você não o decifra, ela te devora.
Disto muita gente sabe. O que pouco se sabe:
a Esfinge se comporta como a pedra de Sísifo.
Depois de te devorar, ela te vomita
e lança um novo enigma (ou será o mesmo?).
Se o enigma é decifrado, depois da porta
há uma nova Esfinge (ou será a mesma?).
— “Decifra-me ou devoro-te!”
— De novo?
— Sim, de novo.
Daí o cansaço,
a conformação,
o fatalismo,
o auto-engano.
Pois:
“Quando a educação não é libertadora,
o sonho do oprimido é ser o opressor” .²
…é ser Esfinge.
Ser Esfinge
para enfim devorar
para enfim saciar a fome.
O opressor está confortável no seu conforto.
Enquanto o oprimido se conforma na opressão, o ciclo se fecha.
Depois de cada enigma um novo enigma,
depois de cada norma uma nova norma,
depois de cada porta uma nova porta
que quatro palavras poderiam abrir.
Para dar nome ao sofrer inominável,
para dar nome ao sonhar inominável,
quatro palavras bastam.
Refs.:
¹ - Depoimento de Menocchio, em: O queijo e os vermes. Carlo Ginzburg.
² - Pedagogia do Oprimido. Paulo Freire.