poemas a tantã

três poemas dedicados ao meu pai, Nathan de Castro.

Pablo Pamplona
besouro
3 min readOct 1, 2020

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Soneto sem faces

(junho/2015)

em resposta ao poema “Com a licença poética das águas”, presente no livro Duetto: Poemas de Lilian Maial & Nathan de Castro.

Meu anjo nunca diz quê quer de mim.
Desde quando eu nasci, mostra-se apraz:
“vai ser cortês ou brega, tanto faz,
ser meigo ou rabugento, vai, enfim…”,

eu nasci, desde então portou-se assim.
Talvez seja um maldito perspicaz
ou um relativista ou incapaz,
pois nunca gastou bem o seu latim.

É sempre a mesma vã filosofia,
desce e lança um palpite bem rasteiro:
“que tal, hein? militar pela anarquia?

ou, sei lá, ser palhaço seresteiro?”
e depois desconversa, todo dia,
como um cão que não solta o seu brinquedo.

Acumulavam tormentas

(março/2015)

Das distâncias amontoadas, da roda viva,
das despedidas não realizadas
e de tudo aquilo que poderia ter sido
mas que ser não podia,
quereria ouvir um conselho sábio
que revertesse a lei da gravidade,
quereria ouvir ao menos um trinado
que quem sabe a consolasse
ou que pudesse apreciar
sem que significasse labuta
ou ausência
ou alguma pessoa em particular, o que dá na mesma.

Mas sentia que o mundo estava acabando e que precisava pôr ordem nas coisas. Aqueles galhos se despiam. Ainda outros estavam ausentes. Outros só não estavam.

Tantas outras pétalas esperaram o fim da estação
para doarem-se à terra, ela não:
fatigou-lhe ficar lá pendente vendo
os galhos chorosos do poente,
galhos que acumulavam tormentas e memórias
demais. São tempos difíceis esses que vivemos,
disse à outra, e assistia
tantas outras pétalas
esperando o fim do dia,
ela não:

saltou nua, pesada, mas eterna
qual outrantas mil pétalas saltadas
quando querem buscar sua primavera.

Pássaros engaiolados

(janeiro/2015)

Chove o dia inteiro,
ao menos onde estou.
Um ano atrás não chovia,
ao menos não onde estava.

Caminho bolando versos,
medindo sílabas, contando dedos
e buscando o que possa simbolizar
qualquer coisa de sensível,
algo tácito, visível, enfim,
qualquer coisa
de sensível,
qualquer coisa -
e vejo
um vira-lata correndo da chuva
e sinto a chuva
e ouço pássaros engaiolados
que me dão por certo nada mais
que um último verso para outro haikai
incompleto e nem sei se necessário.

Chovem memórias.
Não chovia um ano atrás, não onde eu estava,
certamente chovia noutros lugares
e esperam que eu diga algo.

Paro perto dos pássaros e sinto pela sua sina:
continuarão pássaros engaiolados o próximo ano inteiro
e depois por mais tempo,
ou por sei lá quanto tempo;
mas não sinto muito.
Não sei como se chamam, se são
pardais ou canários ou periquitos ou inapropriados
para o verso. Sigo e sinto
que encontro um sentido
(sem razão em enxugar o rosto, já que chove)
quando entendo que qualquer
verso que seja escrito,
não importa se poético,
não importa se sensível,
não importa se falo de pardal
ou de canário ou periquito
ou do vira-lata que corre da chuva,
não chegará aos olhos do poeta a quem o destino.

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Pablo Pamplona
besouro

Mestre e doutorando em Psicologia Social pela USP. Pesquisa a memória de lutas sociais.