quatro poemas já velhos

(2014–2015)

Pablo Pamplona
besouro
3 min readOct 1, 2020

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Pega ladrão

(julho/2015)

Pega ladrão!
(O senhor está bem?)
Pobre cavalheiro, quanta humilhação…
PEGA O PIVETE! Condena, enquadra,
esquece na jaula: não vai fazer falta.
Aquele ali não tem pais,
documentos nem utopias.
Faltou educação,
preparar pro mercado,
faltou instrução
de como servir calado,
falta saúde, cultura, lazer,
mas tem acesso às drogas.
Ah! cada um sabe como viver
da forma que mais te acomoda,
cada um no seu quadrado,
cada qual é cada qual, o que é meu
está muito bem guardado, obrigado.

Pega o pivete, não deixa fugir!
Esse moleque é astuto,
corre feito uma criança
mas rouba como um adulto.
Nunca disse adeus, não sabe o que é amar,
nunca discursou, mal sabe falar,
conhece a fome, não conhece o mar
nem conhecerá, nem deve se importar,
que o que importa é sobreviver.
Pegaram o sem-nome, o sem-terra, sem-teto,
sem-mãe e sem-pai, abandonado por decreto,
enfiaram na cadeia e lá vai crescer.
— Mas como está a vítima?
— O cavalheiro? protegido na graça divina.

Sagrada Escamoteação

(maio/2013 — junho/2015)

Todo esse espaço negado de tormentas,
de utopias que se revertem em realismo,
não — em surrealismo ordinário
abjeto, objetificado,
de temores de sirenes e varejo
num ritual burocrata perpétuo
de desencontros, todo esse espaço,
um pavor calmo, de cansaços e descasos
entre viadutos e becos idealizados, enfim,
todo esse espaço negado de tormentas
confirmará o sadismo programático
na sagrada escamoteação da vida terrena.

Olh’as nuvens, Sísifo!
Não suba resignos, refunda
teu destino mísero, repete
as inquietas nuvens, repletas
de blasfêmias e eletricidade.
Não precisamos de mais mártires.
Bendita a tempestade,
bendito aquele perfume leve
como terra molhada da chuva ou
o gás que nos sangra os olhos ou
argamassa nova carregada de devir.

meu rio, seus olhos –
as cores do girassol
não alumbram mais

Pois porém navego em busca das formas
(às vezes brega e jactante, admito)
e plágios que hão-de explicar
o infinito, por todo o tempo esvaído
(como duvidar de um Deus cínico?)
nos transes da grande cidade.
Não precisamos de mais mártires.
Destronar o que há em vão, um teatro
de operações, porquanto que as nuvens
recusam o sublime, cuspindo, grotescas:
Abaixo as tiranias da paciência! Avante
as tormentas do mundo, às tormentas!,
neste velho tripulante
circundado por insignificantes medos,
buscando qualquer laje de mútuo desejo,
que somente deseja a liberdade
em toda a sua grandeza destrutiva
ou não a deseja em absoluto.

Insone

(setembro/2013 a setembro/2014)

Numa pátria livre, emancipada,
eu te ligaria, sofregamente
te acordaria —
Vem cá em casa, mulher!
que a terra é daquele que a cultiva,
mas o tempo não há enxada que capina.
Jamais que eu consigo dormir,
preciso de companhia.

Vossa formosura, esbravejada,
do alto de vossa boca
sublevar-se-ia —
Que! seu porco machista prepotente empirista!
Sua comuna não ensinou modos
de se tratar uma dama?
Mire veja este tardar de hora
não é tempo para tais tramas.

Ainda entrementes, caro canalha,
não será possível.
Logo menos nesta alvorada
encontro a federação em grande celebração
pela derrubada do capital. E eu diria —
Amanhã encontramos os camaradas,
celebraremos juntos a derrubada
desta saudade terminal.

Crendo esta pauta, enfim, encaminhada,
assim no apelo da discussão
me encerrava:
iludido em minhas verdades, ignorando
as tuas vontades. Mas se te amo, mulher,
é porque à subordinação te negas
e sei ao certo que responderia correta —
Derrubará essa saudade se assim eu quiser.

Brás

(janeiro/2014)

Vendo o céu de fim de tarde
da estação do Brás,
notei
longe,
atrás dos prédios da zona norte,
a silhueta da Serra da Cantareira.
Ao leste, atrás dos prédios do centro,
uma nuvem gigantesca
também formava uma silhueta no horizonte
com a mesma cor
e na mesma altura
das montanhas.

Nuvens que pareciam montanhas
de formas fantásticas,
escondidas da humanidade
até então.
(Talvez fossem.)

Um condomínio próximo da estação
separava um horizonte do outro,
a serra
e a nuvem.
Que sorte tem quem mora naqueles apartamentos!,
pensei. Que sorte recostar nas janelas
voltadas para o nordeste
com a vista desimpedida
para ver o panorama completo e entender
como se desenrola a metamorfose
daquelas montanhas
em nuvens.

arte: Daniel Lindh Swatch.

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Pablo Pamplona
besouro

Mestre e doutorando em Psicologia Social pela USP. Pesquisa a memória de lutas sociais.