Artigo| Dolemite is my name and Blaxploitation is my game!

Renan Honorato
Besouros Verdes Gigantes
8 min readFeb 13, 2020

Um paralelo entre dois comediantes extravagantes e a construção do imaginário cinematográfico na comunidade negra no século passado.

O primeiro motivo que me fez assistir o filme foi ver o Eddie Murphy vestindo roupas extravagantes de um cafetão dos anos 50 cercado por mulheres em trajes setentistas. Dirigido por Craig Brewer, Dolemite is my name apresenta a trajetória paralela de Rudy Ray Moore (Eddie Murphy), um sujeito de meia idade dono de uma loja de discos que almeja o estrelato, e de Dolemite, seu personagem de stand up estilo cafetão com piadas sexualmente explícitas acompanhadas de histórias do folclore Afro-Americano. Moore realmente existiu, assim como Dolemite, ambos fizeram grande sucesso nos anos 70 com seus filmes estilo blaxploitation.

Considerado por muitos, inclusive Snoopy Dogg, como Padrinho do Rap, Rudy Ray Moore possuí uma trajetória artística conturbada — de cantor de boate à cantor de R&B na Alemanha — até os anos 70. Enquanto trabalhava em uma loja de discos em Los Angeles, teve sua epifania quando ouviu um dos moradores de rua do bairro contar em rimas a história de Dolemite, uma figura folclórica das ruas da cidade. A partir daí, Moore assume o codinome e passa a fazer shows de stand up misturando elementos do folclore africano, peculiaridades compartilhadas da comunidade negra dos EUA e muitas, muitas piadas de sexo explícito.

Homem negro, vestindo roupas e chapéu brancas, segura uma escopeta. No fundo, três mulheres com roupas amarelas e vermelha.
Rudy Ray Moore, como Dolemite, em cenas finais de filme de 1975 (Reprodução/Dimension Pictures)

Nos anos seguintes com a nova alcunha, Moore gravou quatro discos entre eles Eat Out More Often, seu primeiro grande sucesso. Através dos lucros dos primeiros discos já em 1975, depois de ser rejeitado por vários estúdios, Moore resolve fazer seu próprio filme com um elenco amador, cinegrafistas novatos e dirigidos por uma estrela em ascensão, Dolemite logo se tornou um sucesso na Era do Blaxploitation.

Blaxploitation: Representatividade ou Caricatura?

Até o final da década de 60, a comunidade afro-americana era sub-representada no Cinema: no início, o escárnio e o racismo eram escancarados pelo uso do Black Face (atores brancos “fantasiados” de negros); com o lançamento de O Vento Levou (1937), as primeiras atrizes negras atuaram nas telonas, porém, ainda em posição secundária no enredo. Empregados, ladrões, escravos e personagens secundários sem muita relevância eram reservados à eles.

“Precisávamos de algo que nos fizesse sentir melhor com nós mesmo. Diariamente tínhamos notícias sobre pessoas sendo presas” — Samuel L. Jackson

A alcunha blaxplotation (“Black Exploration” — Exploração Negra) surge durante os anos 70 para designar filmes estrelados por atores negros e voltados para uma audiência negra. São as primeiras novas interpretações de uma população marginalizada, sendo agora retratada com ambições, sentimentos, sonhos e, o mais importante, como vencedores.

Sweet Sweetback’s Baadasssss Song (1971), dirigido e estrelado por Melvin Van Peebles, foi o primeiro marco desse novo tipo de Cinema. Sweetback’s conta a história de uma prostituta que ao salvar um membro dos Panteras Negras torna-se alvo de policiais (racistas) brancos, subvertendo totalmente a norma hollywoodiana até então.

Segundo Van Peebles, “foi um dos primeiros filmes a trazer um personagem negro até o final da história” (Reprodução/ Cinemation Industries)

As tramas desse gênero geralmente envolviam perseguições policiais, corpos sensuais, roupas de couro e, em alguns casos, artes marciais

Continua sendo alvo de discussões, porém os primeiros a usar a terminologia blaxploitation foram integrantes de movimentos dos direitos civis, como os Panteras Negras e os seguidores de Malcon X. Um dos principais problemas do estilo era negar a consciência política na audiência. A maioria dos heróis do blaxploitation eram anti-herois, na verdade, cafetões, traficantes e atiradores”, disse Samuel L. Jackson em entrevista. Assim, o gênero foi acusado de retratar uma realidade figurativa de esteriótipos e não como representação fidedigna da audiência negra.

“Eu cheguei a quebrar alguns [esteriótipos], mas acabei por perpetuar outros” — Pam Grier, protagonista de Coffy (Reprodução/American International Pictures)

Durante essa época, não foram só os homens que colherem os doces (e amargos) frutos do sucesso. Em Coffy (1973), dirigido por Jack Hill, temos uma “enfermeira negra sexy que resolve fazer justiça contra os traficantes do centro depois que sua irmã torna-se uma vítima deles(Tradução do IMDB).

Apesar dos filmes blaxplotation com protagonistas femininas distanciarem a mulher negra da imagem de submissão, sem educação formal e maternal, atrizes como Glória Hendry (Black Belt Jones) ou Pam Grier (Coffy) contribuíram para a objetificação e sexualização do corpo feminino: a femme fatale, fruto de desejo nos homens e ideal para as mulheres.

Jim Keely e Glorya Hendry no set de filmagens de Black Belt Jones (Reprodução/
Warner Bros)

“De 1972 a 1974, eu fiz, pelo menos, 6 ou 7 filmes do gênero. Eu estava exausta, sendo atacada por todos os lados por fazer filmes assim. Eu estava cansada mentalmente, emocionalmente, não só fisicamente” — Glorya Hendry, protagonista de Black Belt Jones (1974)

Entretanto, para outros, os filmes blaxploitation tinham um único objetivo: o lucro. Em um contexto de lutas civis, Hollywood percebendo que havia uma gigantesca parcela de pessoas que não consumiam seus produtos, adapta e cria um novo material para eles, não por consciência moral, mas por dinheiro.

Shaft (1971), um importante filme de era blaxploitation, foi originalmente escrito para um elenco branco”, diz Ed Guerrero, professor de História do Cinema e Estudos Africanos na Universidade de Nova York. E ainda acrescenta “Dado ao contexto, Hollywood mudou o elenco para um elenco negro”. Essa alteração gerou $12.000.000,00 nas bilheterias.

Como os paralelos vividos por Murphy criaram um novo Moore?

Com um patrimônio de mais de 3 bilhões de dólares, Eddie Murphy tornou-se um dos atores mais populares da história. Entretanto, assim como Rude Ray Moore, iniciou sua carreira no stand up sendo apresentado pela primeira vez ao público durante a temporada de 1983–1984 de Saturday Night Live.

Em Dolemite is my name, o personagem Dolimete é extravagante e de movimentos largos, de riso fácil e lábia geniosa, um arquétipo muitas vezes interpretado por Murphy, não só durante o SNL, como posteriormente em seus filmes. Em Um Príncipe em Nova York (1988), Murphy interpreta um príncipe estrangeiro de costumes peculiares e de vestes tão extravagantes quanto do cafetão de Moore.

Eddie Murphy e Arsenio Hall nas cenas de Um Principie em Nova York (Reprodução/ Paramount Pictures)

As temáticas dos filmes de Murphy sugerem uma readaptação do movimento de 70 — um Neo-Blaxploitation.

Entretanto, não é apenas em roupas e trejeitos que limitam-se suas semelhanças. Em Um Tira da Pesada (1984), acompanhamos a história de um jovem detetive que ao ser motivado pelo assassinato de seu amigo, encontra-se em uma grande investigação sobre o tráfico de drogas.

Vejamos o que temos: um carismático e sensível protagonista negro, profissionalmente bem sucedido e com antigos laços de amizade envolve-se em uma perseguição policial cujo o objetivo permanece claro em sua mente.

E assim como em Sweet Sweetback’s ambos os protagonistas, além de continuarem vivos, chegam ao final vitoriosos. Ou seja, são filmes que colocam em evidência um personagem que gera identificação pessoal e comunitária em um grupo de indivíduos historicamente usurpados de qualquer representação realista de suas vontades.

“O Blaxploitation não gerou renda para muitos negros: foi um movimento rico em arte, música e filmes, mas o lucro foi para Hollywood”- Ed Guerrero

Em contrapartida, temos o outro lado de moeda em filmes como Norbit (2007). Traduzindo literalmente do IMDB, temos: “Um homem educado, casado com uma mulher monstruosa, conhece a mulher dos seus sonhos e planeja encontrar uma maneira de estar com ela.

Nesse filme, nos deparamos com vários esteriótipos, muitos deles construídos durante os anos 70, como: a mulher sensual idealizada pelo protagonista, a “monstruosa” mulher negra de meia idade do subúrbio que além de encrenqueira e com ares de Diva, assume um papel de cafetina dos musculosos irmãos traficantes. Norbit utiliza de diversos conceitos racistas, isolando-os de seu contexto e carga histórica, e os reúne em um discurso de perpetuação dessa consciência abstrata, estereotipada e preconceituosa.

Eddie Murphy estrelou também Harlem Nights (1989) que poderia muito bem ser classificado como um filme blaxploitation dos anos 70

Eddie Murphy interpretando Rude Ray Moore interpretando Dolemite (Reprodução/Netflix)

Devido a esses fatores, a atuação de Eddie Murphy como Rudy Ray Moore, e posteriormente como Dolemite, assume outras tonalidades e camadas de pessoalidade. Ele nos apresenta um homem comum com grandes pretensões que constantemente decepciona-se por conta delas, um homem já acostumado com o fracasso, porém não acomodado. O Rudy de Murphy é uma pessoa insegura, primeiro, pelo seu corpo em comparação aos galãs musculosos da época.

Da’Vine Joy Randolph é sem sombra de dúvidas a melhor surpresa do longa (Reprodução/Netflix)

Os padrões estéticos do astros é um tema recorrente em toda obra de Craig Brewer, especialmente, quando surge no cenário a majestosa Lady Reed, interpretada por Da’Vine Joy Randolph. Ela surge como força de equilíbrio (e meus amigos, que força ela tem nos pulsos) a Moore e Dolemite - um terceiro olhar, servindo algumas vezes como ponte entre essas duas consciências distintas.

Lady Reed assume um importante papel na trama ao contrapor os esteriótipos criados por Coffy e Black Belt Jones ficando evidente quando em prantos diz “Eu nunca me vi nas telas do cinema, eu posso não ser sexy, mas sou uma mulher de verdade”.

Sendo sobre essa realidade que a atuação de Murphy nos surpreende, os conflitos de Moore não se limitam ao corpo, mas abordam também seus conflitos familiares durante a infância sendo a figura paterna o principal expoente dessa ânsia desenfreada pelo estrelato.

Ao subir os créditos, fiquei me perguntando o quanto de Rudy tem em Murphy e o quanto de Murphy tem Rudy. Entretanto, diferença isso não faz, pois afinal, Dolemite is my name não é só sobre a acensão ao estrelato de um artista de meia idade, mas é um relato ao triunfo do Homem comum, o triunfo de uma comunidade.

Referências

Artigos

‘Dolemite Is My Name’ Review: Eddie Murphy, Raw and Cooking. A.O.Scoot, The New York Times, link: https://www.nytimes.com/2019/10/02/movies/dolemite-is-my-name-review.html

Eddie Murphy Is Bringing Eddie Murphy Back. Jason Zinoman, The New York Times, link: https://www.nytimes.com/2019/09/26/movies/eddie-murphy.html?action=click&auth=login-facebook&module=RelatedLinks&pgtype=Article

The Original ‘Dolemite’ Is Bad, Very Bad. But It Matters. Aisha Harris, The New York Times, link: https://www.nytimes.com/2019/10/25/opinion/dolemite-is-my-name.html

Documentário

Bad Assss — Blaxploitation Doc, 2002. Dirigido por Isaac Julien. Link: https://www.youtube.com/watch?v=_6eMscT5DAc

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Renan Honorato
Besouros Verdes Gigantes

Como diria Trevisan: tira essa câmera de mim e vai ler um livro! Crônicas, análises e resenhas. Às vezes, um conto. Às vezes, um tonto.