Artigo| Watchmen e o verdadeiro motivo do porquê Deuses não podem ser negros

Lucas Almeida De Sousa
CRITTIQ
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10 min readFeb 18, 2020

Minissérie produzida pela HBO em 2019 traz sérias discussões sobre a apropriação cultural negra e coloca em xeque um dos casos mais racistas da história dos Estados Unidos.

Reprodução/Quinta Capa

Inspirado por meu amigo e sócio deste blog, Renan Honorato, após seu artigo muito bem escrito, decidi “continuar” a discussão trazendo um pouco mais para a atualidade. Quando a ideia desse artigo veio em minha cabeça, percebi que o jeito certo para falar sobre esse assunto seria através de uma das minhas grandes paixões.

Falar sobre Graphic Novels, com o nome mais popular de histórias em quadrinhos, sempre é uma satisfação para um nerd como eu. Mas, desta vez não seja tão agradável assim. Para aqueles que partilham a mesma paixão que eu por aqui, aficionados por HQs, sabem que elas as vezes tem muito mais do que apenas artes grandiosas e homens de máscaras. Dentre todas com um significado maior do que apenas o entretenimento, temos Watchmen, criada e escrita por Alan Moore.

A PARTIR DESTE PONTO, O ARTIGO CONTÉM SPOILERS DA MINISSÉRIE DE QUADRINHOS WATCHMEN DE 1986 E DA MINISSÉRIE DA HBO DE 2019

O que é Watchmen?

Nesta minissérie em quadrinhos publicada em 12 edições entre 1986 e 1987, temos um enredo que se passa no momento histórico denominado como a Guerra Fria. Onde tensões foram criadas pela Rússia e Estados Unidos. Em paralelo, para trazer o público de outros gêneros de quadrinhos, temos um grupo de vigilantes que atuam em Nova York que não passam de pessoas comuns. Tudo estaria igual a uma HQ normal e não teria uma relevância histórica se não houvesse entre eles, o mais conhecido como Doutor Manhattan.

Após um acidente laboratorial, Jonathan Osterman aderiu poderes sobre humanos. Teletransporte, telepatia, onipotência, onipresença, entre outros poderes englobam a vasta complexidade desse personagem. Basicamente, um Deus. Partindo deste ponto, temos algumas modificações históricas sobre a tensão entre EUA e Rússia e a guerra do Vietnã. A vitória –como alguns países e apostilas questionam- dos Estados Unidos, só foi possível devido ao Dr. Manhattan após ter desintegrado as tropas inimigas.

O Enredo dessas 12 edições começa quando um integrante do grupo de vigilantes suspeita de uma conspiração ligada ao assassinato do Comediante, um ex-membro do grupo Watchmen que foi expulso. No final, nos é revelado que tudo não passava de um plano do homem mais inteligente do mundo, Ozymandias, para unir todas as nações contra um mal comum e encerrar a guerra fria e as ameaças de bombas nucleares.

A grande discussão política em torno desta HQ é a decisão radical tomada pelo empresário e ex-vigilante. Junto de seu plano para torná-lo mais verossímil, ele mata milhões na ilha de Manhattan e assim seu sacrifício genocida salva o mundo da extinção global e todos ficam felizes. Menos Rorschach, vigilante que iniciou toda a investigação. Ele diz que tudo que Ozymandias fez é moralmente errado, apesar de ter salvo o mundo. No fim, ele acaba sendo morto por Manhattan que apoia o plano do gênio louco.

Ilustração do justiceiro Rorschach na minissérie de Alan Moore. Reprodução/Polygon

De 1865 até 2019.

Anos se passaram e Watchmen nunca perdeu sua fama e importância de discussões mais sérias dentro dos quadrinhos. Apesar de não ter sido a primeira que transita entre a realidade e o ficcional em prol de uma discussão mais assertiva, foi ela que teve um maior destaque.

Mas porque ela seria tão importante nos dias de hoje?

No mês de outubro de 2019, a HBO decidiu dar uma continuação a aclamada Graphic Novel de Alan Moore em uma minissérie de 9 episódios. Se passando em uma terra com uma linha histórica diferente, estamos em um Estados Unidos diferente. Onde a tecnologia não é tão avançada como a nossa, um Robert Redford presidente, vigilantes e justiceiros criando guerras com seus caçadores, policiais vestindo mascaras para proteger suas vidas e claro, um ressurgimento de um estado democrático segregativo.

Assim como a maioria das apostilas gostam de relembrar, a América em seus anos de American Dream vieram junto com a época mais segregativa e racista do País.

No dia 31 de janeiro de 1865, foi redigido a 13ª Emenda da constituição estadunidense que proibia a escravidão e servidão em todas as vertentes. Junto dela veio a 15ª Emenda da constituição que proibia que alguém fosse impedido de votar. Independente da sua raça, cor ou classe social. Essa época ficou conhecida como a “Era da reconstrução”.

Que por sinal, durou pouco devido a pressões de políticos sulistas dos Estados Unidos. Onde a escravidão demorou mais para se encerrar apesar de ser o lado perdedor da guerra civil da época. Logo, começará a grande segregação racista dos Estados Unidos que ficaram conhecidas como “As Leis Jim Crow”

Jim Crow era um personagem fictício da época que fazia uma representação racista da população negra na década de 1830

Representação Ilustrativa do personagem Jim Crow. Reprodução/New York Public Library

Neste ponto, todo mundo sabemos o que seriam a leis segregativas. Criada em uma base que dizia “direitos iguais, mas separados”, vemos aqui as maiores representações racistas muito usadas no cinema, por exemplo. Vagões apenas para negros, bebedouros e banheiros separados entre brancos e coloridos, faculdades com politicas apenas para brancos, entre outras situações.

Porém, entre todos os estados racistas espalhados pelos Estados Unidos, temos um que foi de maior destaque e importante para a série de Watchmen, Oklahoma. Criado originalmente para ser uma reserva indígena, o estado foi culturalmente criado seguindo uma vertente do modelo escravista e racista do sul. Onde tudo era atingido pelas leis Jim Crow, que inclusive estava enraizadas nas leis estadistas.

É importante ressaltar que nessa época, todos podiam votar. Mas, as características para uma mulher ou um homem negro participar das eleições eram tantas que chegava a ser impossíveis de ser cumprir todas. Assim como todas vertentes publicas onde cidadãos podiam participar.

Com isso, as situações de racismo e segregações ficaram cada vez piores com a chegada da primeira guerra mundial. Onde a maioria dos combatentes dentro do exército americano eram negros. Que acabou criando-se ideias discriminatórias dentro dos pelotões.

Dentre 2 milhões de soldados que foram para a guerra, cerca de 370 mil eram negros e quando ela acabou, nenhuma política ou suporte foi dado aos soldados da época. Isso agravou drasticamente a opressão e violência contra a população negra devido a alta taxa de desemprego e grupos radicalistas supremacistas, que organizavam linchamentos e ataques contra pessoas de cor de diversas cidades.

A concentração em Oklahoma, mais especificamente em Tulsa, de povos brancos, negros e imigrantes-que também eram atacados por grupos radicais-triplicou naquela época. Isso ocorreu devido a descoberta de poços de petróleo.

Assim como na Alemanha nazista, ocorreram a segregação em bairros. O de ampla maioria negra se chamava Greenwood, que por sinal era o bairro comercial mais próspero e muito bem posicionado de maneira econômica. Foi conhecido naquela época como a “Wall Street negra”, termo racista referido naquela época.

Foto do bairro de Greenwood, 1921. Reprodução/Bloomberg Philanthropies

Tudo mudou no dia 30 de maio de 1921, quando o caso Dick Rowland aconteceu. Após uma mulher branca ter feito acusações-que provavelmente são falsas-contra Dick que era um homem negro, de te-la abusado sexualmente, instalou-se uma tensão em Tulsa. Que levou a um dos casos mais inacreditáveis da historia racista americana, o massacre de Tulsa.

Após o xerife ter recebido informações sobre o linchamento Dick Rowland, cerca de 80 homens negros se armaram e foram até o tribunal onde acontecia o julgamento para evitar que isso acontecesse. Onde a KKK e outros grupos radicalistas também estava presentes e armados. Em meio a tensão do julgamento, um homem negro recusou a entregar sua pistola para um homem branco, o que causou um estopim para o evento.

Para conter o conflito e não atingir outras cidades de população branca, foi feito um cerco a Greenwood. Onde acontecia todo o cenário de violência, mortes e saques contra o bairro popularmente negro. O termo racista na época foi referido como a “A revolta dos negros”. Cerca de 300 pessoas morreram no dia e mais de 8000 ficaram feridas. A maioria entre mortes e pessoas machucadas, eram negros.

“Mas qual seria a relevância dos acontecimentos de Tulsa para a série Watchmen?” Simples, a nova minissérie da HBO se passa na cidade de Oklahoma, onde aconteceu o massacre e possui um forte vinculo com a narrativa.

A primeira cena do episódio de estreia nos coloca dentro do conflito. Pelos olhos de um garoto que se torna um personagem importante para o desenrolar da historia que vem a seguir. Junto disso, vem com a principal discussão da série. A apropriação cultural negra.

Cena inicial do primeiro episódio da Minissérie Watchmen. Reprodução/HBO.

O verdadeiro motivo do porque Deuses não podem ser negros.

A minissérie Watchmen para manter um suspense e não jogar todas as suas cartas de uma vez, usa o recurso de não linearidade para contar sua historia. Logo em seguida à cena acima acompanhamos a personagem Angela Abar nos tempos de hoje, personagem representada pela atriz Regina King.

Angela é uma policial “aposentada” que em segredo é a vigilante a favor da lei “Sister’s Night”. Ela é casada com um homem negro com três filhos adotivos, os três são brancos. Em uma cena escolar do primeiro episódio, onde Angela apresenta para turma do seu filho mais velho sua profissão de fachada, ela é surpreendida com a seguinte pergunta:

“Você é a favor das Redfordações ?”

As Redfordações foi um projeto de campanha criado pelo ator e presidente no mundo Watchmen, Robert Redford. O projeto consiste em dar uma “bolsa-compensação” para negros de todo o País pela escravidão.

Com isso, criou-se uma onda racista crescente nos Estados Unidos no universo da série. E junto disso, veio o grupo supremacista denominado “Os Rorschach”. Grupo radical que faz ataques a não apenas negros, mas policiais também. Isso traz o motivo do porque policiais usam mascaras. O grupo terrorista é fundado em cima da premissa de acreditar em uma “America de volta aos tempos de ouro”.

Esse grupo radical fictício tem origem na época 1960. Antes denominado como “Os ciclopes”. Essa vertente da historia é muito importante para o personagem mostrado no clipe do episódio acima.

Na série, é abordado varias vezes sobre um documentário em relação aos “Minutemen”, o primeiro grupo de vigilantes criado no universo de Watchmen. Em alguns episódios é mostrado para o público que o primeiro vigilante famoso conhecido como “o justiça encapuzada” era um homem branco, justiceiro e muitas vezes discriminado por ser homossexual.

Porém, ao desenrolar da trama, é nos mostrado de maneira impactante uma forma de apropriação cultural negra na sua forma mais pura. O Justiça encapuzada na verdade, foi um policial negro e homossexual antes de se tornar um justiceiro. A sua descrença na justiça aconteceu quando ele tentou prender um homem por racismo. No dia seguinte, o homem foi solto e nada foi feito. Logo após o ocorrido, policias da mesma diligência que a sua tentaram matá-lo enforcado para simplesmente se livrar dele.

Representação no documentário dentro da minissérie Watchmen do vigilante Justiça encapuzada. Reprodução/HBO

Em suas vestimentas como justiceiro, ele usa uma corda no pescoço com um laço. No documentário é nos dito que o justiça encapuzada usa essa corda para representar a opressão contras a pessoas menos favorecidas, quando na verdade, o real motivo foi porque um homem negro foi quase morto enforcado por ela. Logo em seguida em um surto de raiva, o policial negro mata os supremacistas com a corda ainda no pescoço.

Através dessa representação forte e cheia de simbolismos, a série choca o seu telespectador, mostrando que apesar de ser algo fictício, é tão real quanto um massacre no bairro negro mais próspero dos Estados Unidos. É impressionante como Watchmen encontra uma linha tênue entre o real e o inventado sem deixar de ser uma discussão que pode perdurar por anos.

Outro exemplo mostrado na série, é em volta do ser mais poderoso do universo de Watchmen, Doutor Manhattan.

Recluso após o plano de Ozymandias ter dado certo, Manhattan está desaparecido onde muitos acreditam que ele está em Marte. Quando na verdade está em Tulsa, vivendo sem seus poderes na pele de um homem negro. Quando Angela descobre o plano da organização supremacista de roubar os poderes de Manhattan para criar basicamente um Deus racista, ela decide fazer algo a respeito. Quando o Doutor é despertado, apesar de saber de tudo sobre presente, futuro e passado, ele decide não lutar.

Manhattan é derrotado e capturado e a série faz questão de mostrar que ele tem todo o potencial de fugir, mas não o faz e aceita o seu “destino” assim como o próprio super humano diz. O curioso é que, mesmo voltando a ser o Deus azul novamente ele decide manter suas afeições e aparência do homem negro, apesar do personagem ser originalmente branco.

No fim, Manhattan é morto e seus poderes são retirados e extintos. E finalmente vem a grande mensagem da série e o motivo do porque Deus não pode ser negro.

Assim como em Tulsa quando homens brancos se apropriaram daquilo que uma população negra criou, um homem branco se apropriou da história de um vigilante negro. Que final, também tentou se apropriar do poder de um Deus que era também era negro. Manhattan decidiu não lutar porque o seu destino não era imutável, mas sim porque ele sabia que isso aconteceria de novo até que um dia, alguém iria conseguir.

Integrante do grupo Os Rorschach na minissérie Watchmen. Reprodução/HBO

Ao juntar a minissérie com sua fonte original, percebe-se um obra completa. Não é apenas homens azuis que são Deuses ou justiceiros que buscam saber a verdade. Watchmen é uma aula de apropriação cultural negra e como ela está enraizada em nossa história. A reflexão e atenção sobre certos assuntos que não sabemos ou compreendemos é o que precisamos nesse momento. O pior disso tudo é que, ninguém está falando sobre esse evento.

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Lucas Almeida De Sousa
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18 anos, morador de São Paulo, Brasil. Sempre tive entusiamo para escrever e tirar fotos. Futuro jornalista e se tudo der certo, escritor também.