Estrelas Brancas, Verdes Olhos

Renan Honorato
Besouros Verdes Gigantes
6 min readSep 10, 2020

Minha primeira lembrança da vida foi um dia na piscina, não sei ao certo a idade que tinha, mas deveria ser uns 3 ou 4 anos — falam que é por essa época que as primeiras memórias surgem, então achei melhor acreditar. Lembro de ter ficado a tarde inteira sentado no colo da minha mãe (ou do meu pai, que diferença faz?) encarando aquele azul meio claro, meio brilhoso que só as piscinas cheias de cloro conseguem ter. Por algum motivo doméstico fui colocado no gramado morno — minhas mãos jamais esqueceram desse toque, nem mesmo agora. Meus olhos acompanhavam uma folha caída na superfície do finito azul — acho que era de acerola, já que tínhamos um pé plantado à beira da água. Aquela singela folha dançava uma música violenta a cada mergulhão dado por meus irmãos, subia, descia e voltava a subir até que uma hora, ela desceu. E desceu, e desceu, eu a tinha perdido de vista, “para onde foi?” surgiu na minha cabeça.

Engatinhando (deve ter sido, porque é isso que as crianças pequenas fazem, não é?) saí do gramado morno para um chão de pedra quente, sempre me perguntando o que teria acontecido com aquela delicada folha que boiava tão alegremente naquele azul. Lembro de ter começado a me desesperar, como se uma grande mão estivesse apertando alguma coisa dentro da minha barriga, espremendo, torcendo para que algo saísse ou entrasse…

Eu buscava ar, qualquer vento, sopro ou suspiro que pudesse saciar aquela dor que me retorcia, mas só encontrava água & cloro. Eu pedia ajuda & minha boca se enchia de água. Eu gritava & a água me acudia. Eu chorava & ela limpava meu rosto, se expandindo dentro de mim, ocupando o lugar dos órgãos & da carne.

Só sei que a primeira coisa que vi despois que tudo escureceu foram dois olhos verdes, os olhos de minha mãe, esses olhos… Parecia que a cada piscar eles queriam me dizer alguma coisa, uma súplica, uma benção; eles brilhavam à cada sorriso que ela dava, brilhavam como estrelas.

Eu pedia ajuda & minha boca se enchia de água. Eu gritava & a água me acudia. Eu chorava & ela limpava meu rosto, se expandia dentro de mim, ocupando o lugar dos órgãos & da carne.

“Universo: a fronteira final”, o limite que separa o Tudo do Nada, o ser que envolve a todos num abraço sem mãos, nos orienta sem propósito enquanto buscamos respostas vindas de boca nenhuma. Sempre achei que o universo fosse como um oceano & os planetas folhas de várias árvores sem raízes que boiavam sem rumo. As pessoas, eu acho, nunca tiveram medo do espaço, mas sim, do que pode vir de lá, o desconhecido, do mesmo jeito que elas têm medo do mar.

E assim como o mar, o espaço sufoca, te afoga em uma vastidão de supernovas. Enquanto você fica maravilhado com a magnitude e a beleza das constelações, seus vasos sanguíneos explodem, seu corpo incha e sua saliva, suor e todo líquido do seu corpo fervem devido à pressão. Mas a gente nem percebe isso acontecer, pois após 15 segundos você desmaia devido à falta de Oxigênio.

Sempre me achei meio extremo em algumas situações, quase que suicida em casos específicos, um exemplo disso foi quando fugi de casa. Na época, os olhos de minha mãe haviam parado de brilhar daquele jeito que eu me lembrava, se tornaram opacos & roxos. Meus pais se separaram naquele ano, nunca mais eu vi o pé de acerola, nem a piscina cheia de cloro, nem os olhos verdes… de minha mãe.

A Universidade foi fundada a cerca de 80 anos, depois dos voos espaciais comerciais já terem se tornado recorrentes,

Devia fazer uns seis ou sete meses que eu, meu pai e meus irmão tínhamos nos mudado para um desses condomínios na capital. Meu pai nunca mais falou da minha mãe, meus irmãos esconderam-se dentro de si mesmo feito caramujos; fiquei irritado com toda aquela solidão que me enxia e resolvi ir embora para lugar-nenhum. Peguei uma mochila qualquer e saí pela porta depois de meu pai ter ido ao trabalho — eu sabia que ele ia ficar desesperado & que as câmeras iriam me filmar, mas não me importei. Andei pelas vias iluminadas por horas até parar para descansar num pequeno verde parque no meio daquela poluição central.

Acabei voltando para a casa tarde da noite, não porque sentia saudade, nem porque tinha fome ou qualquer necessidade animal, mas porque havia esquecido na gaveta de camisetas o último retrato que tinha tirado com minha mãe. Meu pai me deu uma surra, fiquei de castigo por uns três meses, mas nunca respondi o porquê de ter saído e nem o porquê de ter voltado, nem para o meu pai, nem para os meus irmãos & muito menos para a terapeuta.

De qualquer maneira, acho que foi por esse mesmo desvio de caráter que me fez querer estudar Astronomia na Universidade Lunar de Astronomia. Eu acabei passando nos testes internacionais que foram excruciantes, dolorosos e sádicos — metaforicamente falando — mas me permitiram ver a beleza da terra que apenas alguns haviam conseguido, mesmo com todos os avanços tecnológicos dos anos 2152. A Universidade foi fundada a cerca de 80 anos, depois dos voos espaciais comerciais já terem se tornado recorrentes, como uma base avançada internacional para a pesquisa do solo lunar, mas ao perceberem que o solo era pobre em minerais, transformam-na no centro mais avançado de pesquisa do cosmo.

Para chegar na Lua agora não gastávamos mais bilhões de dólares em combustíveis, foguetes descartáveis e coisas do tipo. Cerca de 30 anos atrás, um dos ramos da complexo industrial-comercial Amazon teve uma ideia brilhante: construíram um elevador de mais de 30 mil “andares” misturando um material chamado fulereno com sensores eletromagnéticos, que repeliam os pequenos asteroides. No topo desse elevador foi construído uma plataforma de embarque & desembarque para as naves que completavam o transporte. E foi nesse ponto de ônibus interplanetário, enquanto eu esperava uma dessas naves fretadas, que o sinal começou a gritar em vermelho.

Cerca de 30 anos atrás, um dos ramos da complexo industrial-comercial Amazon teve uma ideia brilhante: construíram um elevador de mais de 30 mil “andares”

O som estridente ecoava por toda aquela instalação há centenas de milhares de quilômetros de quaisquer bombeiros ou guarda civil; uma voz feminina repetia em diferentes línguas as mesmas sentenças: “Atenção: uma chuva de meteoritos se aproxima das instalações. Tenham calma, não há com o que se preocupar. O Elevador encontra-se fechado. Dirijam-se para as áreas de segurança”. E foi isso que as duas centenas de pessoas que estavam espalhadas pela instalação fizeram.

Na área onde eu estava deveria ter umas 50 pessoas por perto, o ambiente branco era bem iluminado apesar das poucas luzes do teto, acho que era por conta da luz do Sol que nascia naquele dia: o planeta Terra encontrava-se silencioso, apático a toda aquela movimentação, não fazíamos a diferença. Foi aí que senti um estrondo reverberar nas paredes, no chão, em toda a instalação. Quando virei o rosto vi as pessoas sendo puxadas para fora da sala e logo em seguida senti uma mão, uma força, me agarrando, meus pés param de tocar o chão e no mesmo instante estava boiando naquele infinito estrelado, por um milhar de segundos, enquanto os raios solares atingiam as camadas exteriores do atmosfera, lá em cima, pude ver os brilhos dançantes da aurora bureau — rosa, azul, amarelo e verde… O verde dos teus olhos, mãe, sinto sua falta, espero finalmente te encontrar agora, olhando para mim, sorrindo, como naquele dia da piscina.

Os corpos inertes e gelados flutuam pela atmosfera.

A gravidade fará seu trabalho.

Nunca mais eu vi o pé de acerola, nem a piscina cheia de cloro, nem os olhos verdes de minha mãe.

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Renan Honorato
Besouros Verdes Gigantes

Como diria Trevisan: tira essa câmera de mim e vai ler um livro! Crônicas, análises e resenhas. Às vezes, um conto. Às vezes, um tonto.