Crítica| Enterrem meu Coração na Curva do Rio — Dee Brown

Renan Honorato
Besouros Verdes Gigantes
4 min readMar 3, 2020

Primeiramente é preciso ter em mente que este não é um livro de ficção. Aqui, você não verá pistoleiros errantes usando poncho, donos de bares suados e indígenas malvados, tão pouco irá se deparar com o Bom Selvagem de Rousseau. Em Enterrem Meu Coração na Curva do Rio, de Dee Brown, nos deparamos com o relato histórico de múltiplas nações indígenas na sua constante tentativa de resistir as imposições do Oriente branco.

Nuvem Vermelha, líder dos Sioux Oglalas (Reprodução/Wikipédia)

Como se fosse Wovoka, dos Paiutes, com sua Dança dos Fantasmas, Dee Brown invoca os sussurros enterrados das grandes nações da planície norte-americana durante um conjunto de conflitos e negociações que ficaram conhecidas como Guerras Indígenas (1778–1890) que esterilizaram qualquer presença nativa no território.

Enquanto os autóctones, em sua grande maioria, interpretavam a Terra e tudo em que nela habita como uma “benção” do Grande Espírito, portanto deveria ser tratado com respeito e cautela. Na medida que os brancos, já adestrados por séculos de exploração da terra e do acúmulo para a sobrevivência na Europa, se infiltravam ainda mais no novo território, esse modo de vida mais materialmente desapegado e sazonal começou a atrapalhar os interesses de capital burguês.

Foi por essa desavença que a mais brutal das ações contra os Cheyennes e Arapahos aconteceu nas primeiras horas do dia 29 de Novembro de 1864. Na época, ambas nações caçavam e viviam na região do Rio Arkansas, uma área conhecida como Sand Creek em território protegido por um forte militar que acabará de receber um novo comandante, major Scott J. Anthony “Olhos Vermelhos”.

Little Wolf e Faca Embotada (Reprodução/Alexander Gardner)

Por essa mudança administrativa, os chefes tribais foram até Fort Lyon apresentarem suas intenções de paz, que foram recebidas de bom grado por Olhos Vermelhos. Após a partida dos líderes, o major reuniu uma força com cerca de 700 homens e marchou rumo ao acampamento em Sand Creek. Por ação premeditada, Anthony deu permissão aos guerreiros tribais irem caçar nas regiões em que se concentravam os búfalos, portanto as 600 pessoas que estavam acampadas eram compostas por mulheres, idosos e crianças.

Naquele tempo, Motavato, líder dos Cheyennes, levava sempre consigo uma bandeira americana dada pelo então presidente Abraham Lincoln durante uma cerimônia de paz, na qual estava presente também A. B. Greenwood, comissário dos Assunto Índios, que disse: “Enquanto essa bandeira flamulasse sobre eles [cheyennes], nenhum soldado dispararia contra eles”. Sabendo disso, podemos imaginar a surpresa de Motavato ao sair pelo acampamento segurando um mastro com a bandeira em haste e vendo 700 soldados americanos não só matando, mas estuprando, estripando e mutilando os que dormiam ali.

Sepultura localizada em Concho, Oklahoma com os dizeres “Menina Cheyenne, idade 12–14, Sand Creek” (Reprodução/George Levi)

Brown reúne os relatos não só dos Cheyennes e Arapahos que sobreviveram à Sand Creek, acompanhamos os Apaches e suas guerrilhas nas fronteiras do México liderados por Manuelito e Gerônimo; cavalgamos ao lado de Touro Sentado em sua fria partida ao Canadá após sua grande vitória em Big Horn.

Todavia o autor não é um simples compilador, primeiramente é um narrador, o que poderia ser tomado como um simples assinar de documentos é reinterpretado pelo autor através daqueles que ali assinaram seus nomes. Ele nos revela como o natural ato de envelhecer transforma o individuo, como é o caso de Nuvem Vermelha, o grande chefe-guerreiro dos Sioux Oglalas, o único que até então havia conseguido preservar o seu território e resistir a expansão americana.

Devo admitir que a cena que mais me comoveu foi o episódio da Dança do Fantasmas. Em um cenário em que os índios que sobreviveram aos massacres encontravam sem perspectiva alguma de futuro, onde as crianças eram retiradas de seus pais e enviadas à reformatórios cristãos e os grandes chefes estavam mortos, velhos ou bêbados demais, surge o Wovoka, o Messias das tribos.

Wovoka era um Paiute que profetizava o eminente fim da civilização americana e de suas cinzas os mortos se uniriam aos vivos em uma terra fértil de caça, paz e felicidade. Entretanto para que isso ocorresse, aqueles que estavam nas reservas deveriam fazer uma grande dança em súplica aos caídos e ao Grande Espírito. E eles dançaram… e dançaram. Por dias, as últimas centenas das grandes nações indígenas que restavam nas reservas dançaram durante o inverno, contra a vontade dos soldados, das agências e do Governo americano. Segundo relatos, as trincheiras cavadas pelos pés cansados deixavam uma grande macha sangrenta na neve, o choro dos bebês e de suas mães uniam-se em uma única voz de resistência, uma voz que agarrava-se a última esperança: a Fé.

Nativos Lakota em roupas cerimoniais da Dança Fantasma, 1880 (Reprodução/ Digital Public Library of America)

Enterrem Meu Coração na Curva do Rio não é um livro de lamento, não é um livro aos mortos, simplesmente, essa é uma obra de advertência para aqueles que vivem, uma memória de resistência dos traídos que orvalharam a fértil pradaria de vermelho.

--

--

Renan Honorato
Besouros Verdes Gigantes

Como diria Trevisan: tira essa câmera de mim e vai ler um livro! Crônicas, análises e resenhas. Às vezes, um conto. Às vezes, um tonto.