Nas Asas do Corvo

Uma Análise do poema de Edgar Allan Poe

Rafaela Reoli
Besouros Verdes Gigantes
6 min readAug 26, 2020

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O autor Edgar Allan Poe nasceu em janeiro de 1809 em Massachusetts nos Estados Unidos, e sua infância foi de extremas dificuldades: abandonado pelo pai, sua mãe faleceu quando ele tinha apenas dois anos; logo, foi acolhido por Frances e John Allan, que moravam em Virgínia.

Ao contrário de seu pai adotivo, sua mãe era muito compassiva, entretanto isso não impediu que Poe sentisse uma grande falta de afeto paternal, o que fez com que crescesse muito amargurado. Além disso, sua amada esposa Virgínia Eliza partiu cedo demais, resultando na completa entrega do escritor a bebida e em sua morte aos quarenta anos de idade, sem sequer ter presenciado o reconhecimento mundial que conquistou através de seus poemas e contos.

Ao analisarmos sua biografia e lermos seus livros, é possível traçarmos facilmente um paralelo entre ambos, afinal, encontramos a atribuição de seus sentimentos nos mesmos. Tais aspectos definiram e caracterizaram sua escrita, sendo os mais apontados a melancolia, a lugubridade, o romantismo, o horror e o mistério.

Em seu consagrado poema “O Corvo”, cujo qual iremos analisar hoje, o escritor foi capaz de unir todas as singularidades referidas em uma só composição, e ouso dizer que esse foi o principal motivo pelo qual é a obra mais conhecida do mesmo.

O início te prende com facilidade em virtude da atmosfera estabelecida pelo autor, que desperta a curiosidade do leitor dada as circunstâncias apresentadas: um ambiente gélido em função do “frio dezembro”; um horário tipicamente conhecido como sendo temeroso (meia noite); um estudante, cuja identidade não é revelada, procurando em livros um conforto para sua tristeza devido a partida de sua amada Lenora¹, e um soar na janela do quarto do rapaz.

“Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais.

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro, E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu’ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P’ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais, mas sem nome aqui jamais!”

Tal soar torna-se incessante, contudo, o indivíduo custa a render-se a crença de que esse era apenas por conta de uma visita, e, quando finalmente o faz, depara-se com um corvo adentrando seu quarto e pousando sob uma estátua de Atena que lá estava.

“Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.”

De modo sarcástico, o personagem decide se dirigir ao ser que ali pairava e questiona seu nome, como se conversando com outra pessoa. E, para sua surpresa, ele o responde com uma palavra (palavra essa, que se faz presente em todo o decorrer da história):

"nevermore" (nunca mais).

“E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado, ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!

Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."

Disse o corvo, "Nunca mais".

Pasmado, o rapaz tende a pensar que ele o havia entendido, afinal, foi "respondido" com muita prontidão. Ademais, esse pensamento é logo interrompido, pois essa é a única palavra que o misterioso pássaro profere.

Em seu ensaio “A Filosofia da Composição”, Poe afirma que ponderou bastante sobre qual justificativa usar para que a palavra "nevermore" fosse repetida, e não demorou para que decidisse incluir um animal em sua narrativa, mais especificamente um animal que possuísse a habilidade da repetição. O primeiro candidato foi, obviamente, um papagaio. No entanto, o literato concluiu que um corvo seria mais certeiro, não apenas por "casar" melhor com o enredo e ambientação da trama, como também por conseguir reproduzir as palavras e entonação humana.

Na progressão dos versos o homem insinua o mau agouro que a ave traz em razão de crenças ocidentais comuns na ancestralidade, cujas quais acreditavam no prenúncio e na obscuridade do mesmo.

O narrador também reflete sobre a razão pelo qual a criatura, tão estranhamente, optou por repousar em sua casa. Podemos interpretar que o motivo para tal é justamente devido à partida de Lenora, que seria o tal “mau agouro” mencionado anteriormente.

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que queria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais, Com aquele "Nunca mais".

Uma súbita sensação de densidade no ar fez com que, por algum motivo, o rapaz relembrasse de sua amada, suplicando para que alguma entidade divina desaparecesse com sua angústia, ao passo que a controversa figura novamente, após alguns instantes sem “respondê-lo", emite a frase: nunca mais.

“Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!" Disse o corvo, "Nunca mais".

Apavorado e enfurecido, o jovem, retornando ao seu pensamento de que a criatura realmente o compreendia, o repreende e outorga a ela um caráter demoníaco e até vidente, afinal, dentre tantos lugares dos quais poderia ocupar, optou por um que pairava ar fúnebre e lutuoso.

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
E a minh’alma dessa sombra que no chão há mais e mais, Libertar-se-á... nunca mais!

Tradução: Fernando Pessoa (Reprodução/WordPress)

Somos capazes de atribuir numerosas analogias e interpretações ao poema de Allan Poe, desde as mais aparentes – a relação do corvo com o luto e a premonição, considerando o fato do animal ter pousado em uma estátua de Atena² criando-se um paralelo com a morte de Lenora; a circunstância de demasiada desgraça em que o lirista se encontra e a consciência epíloga de que a declamação “nunca mais” sugere que Lenora não voltará, ou que o rapaz jamais se libertará do desfortúnio em que se encontra. – até as mais implícitas:

O motivo pelo qual nos deslumbramos na mesma medida que o eu-lírico no decorrer da história, ao observarmos o corvo responder todas as suas indagações é em reflexo da precisão das respostas, não obstante, existe uma causa distinta para tal que é, também, a precisão das perguntas. O retorno é tão assertivo, em razão dos questionamentos serem cabíveis à amargura do sujeito, tornando o que o corvo enuncia conivente com tal sentimento, e fazendo com que compreendamos a emoção do mesmo.

Toda essa sensação que nos é causada não é à toa, como o próprio Poe afirma em seu ensaio: “nada em sua composição foi acidental ou intuitivo (...) – o poema avançou passo a passo com a precisão e o rigor de um problema matemático”. Ou seja, ainda que a biografia do autor seja de acontecimentos que eventualmente o levaram a seus clássicos (através da incumbência de seus sentimentos), esses, foram escritos em bases deveras premeditadas, sendo a experiência do leitor um resultado de seus cálculos.

No mais, podemos concluir que a preponderância da obra-prima de Edgar Allan Poe possui fundamento, levando em consideração as inúmeras possibilidades de interpretações e críticas, tanto processuais quanto filosóficas, além de todo prudência que o escritor dispôs ao escrevê-la.

Até os sentimentos mais compreensíveis carecem de técnica para serem expressados de tal maneira.

¹ - O nome “Lenora” aparece apenas no poema original e na tradução de Machado de Assis.

² - na Mitologia Grega a ave possui a função mensageira e profética.

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Rafaela Reoli
Besouros Verdes Gigantes

Jornalista, fotógrafa amadora, baixista, apaixonada por histórias de horror, gatos e plantas. | "Temos a arte para não morrermos perante à verdade" — Nietzsche.