“É submissão automática”, diz Celso Amorim sobre relação Brasil-EUA

Ex-chanceler nos governos Itamar e Lula afirma que Bolsonaro está realizando, de graça, um antigo objetivo norte-americano: dividir o Mercosul

Gabriela Stähler
Redação Beta
7 min readMay 27, 2020

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Celso Amorim foi Ministro das Relações Exteriores nos governos Itamar Franco e Lula (Wilson Dias/Agência Brasil)

A afinidade entre o presidente Jair Bolsonaro (ex-PSL) e seu colega Donald Trump tem custado caro ao Brasil. E deve custar ainda mais, com os consequentes prejuízos de agressões à China e do afastamento do bloco do Mercosul, sob obediência cega aos Estados Unidos. Assim pode ser resumida a análise que o ex-chanceler Celso Amorim, em entrevista exclusiva à Beta Redação, faz das relações internacionais brasileiras sob o governo Bolsonaro.

Ministro das Relações Exteriores nos governos Itamar Franco, de 1993 a 1995, e Lula, de 2003 a 2010, e da Defesa no governo Dilma, de 2011 a 2015, Amorim vê com espanto a mudança nas tradições diplomáticas brasileiras e preocupa-se com o futuro do país. “No momento em que se for pensar em construir o mundo após essa depressão, que vai ser muito forte, o principal fornecedor de investimentos não vai ser os Estados Unidos, vai ser a China”, alerta.

Leia, a seguir, a íntegra da entrevista.

Bolsonaro tem se alinhado ideologicamente a Trump, principalmente durante a pandemia, a exemplo da defesa do uso da cloroquina. Quais consequências podem surgir desse alinhamento?

Já está afetando o Brasil, mesmo antes do coronavírus, essa postura de submissão absoluta. Não é alinhamento automático, como algumas vezes se falou. Isso nunca houve, mesmo na ditadura militar. No governo Costa e Silva, o Brasil decidiu, por exemplo, não assinar o tratado de proliferação nuclear, que era uma altíssima prioridade dos Estados Unidos. No governo Médici, o Brasil adotou a ideia do mar de 200 milhas, que era contra o interesse norte-americano.

E justamente na época do Geisel, o ministro Azeredo da Silveira inventou a expressão “não alinhamento automático”. Em função não só da política nuclear, o governo Geisel rompeu o acordo militar com os Estados Unidos.

Tem uma frase do chanceler Juracy Magalhães que falou que “tudo que era bom para os Estados Unidos era bom para o Brasil”. Daí se gerou a ideia do alinhamento automático. Hoje em dia nem é alinhamento automático, é uma submissão automática. Não é dizer “vamos ficar do lado dos Estados Unidos”, não estou dizendo que isso seria bom, mas não é ficar ao lado dele nas grandes questões mundiais. É ficar do lado dos EUA em qualquer questão, inclusive contrariando o nosso próprio interesse.

Isso se mostrou até em relação ao acordo Mercosul-União Europeia. O próprio governo brasileiro festejou. O acordo foi negociado durante anos, acelerou-se muito no governo Temer e no governo Macri, que eram neoliberais. O pré-acordo foi assinado já no governo Bolsonaro, que festejou como uma grande vitória, o Guedes ficou contente etc. Vem o secretário de comércio norte-americano ao Brasil dizer que o acordo podia ter, segundo ele, algumas pílulas envenenadas, e imediatamente o Bolsonaro passa a dizer que o acordo tem armadilhas e destrata o ministro das Relações Exteriores francês e passa depois a agredir a mulher do presidente francês etc.

É um alinhamento absoluto total, submisso. Isso é uma coisa que nunca existiu antes. Sobre os prejuízos, com relação aos países árabes e muçulmanos, o fato do Brasil ter criado um mal-entendido sobre a embaixada de Tel Aviv mudar para Jerusalém, também para seguir o governo Trump. Isso também afeta nosso comércio com os países árabes.

E com a China, o governo contrariando os interesses dos brasileiros, só tem usado de palavras agressivas em relação ao país. É o país que mais poderia dar assistência ao Brasil no combate ao coronavírus. É um grande país, que primeiro sofreu, teve lá seus problemas, mas conteve, porque tem experiência, equipamento, material. O Brasil, que poderia ser o primeiro da fila na cooperação, está sendo tratado como mais um comprador qualquer. A China é um país com o qual temos parceria estratégica.

Há cerca de um mês, o México propôs uma resolução sobre acesso a equipamentos de saúde e vacinas. Ninguém se atreveu a se opor. O Brasil foi um dos poucos países que não copatrocinou a resolução. Tenho certeza que isso tenha sido feito por um pedido expresso da chancelaria norte-americana. Isso é um escândalo.

Em matéria do clima, que agora o assunto ficou menos óbvio, mas vai voltar de maneira forte… Mas não só isso, proteção dos direitos indígenas… Abaixo-assinados mundiais iniciados pelo fotógrafo Sebastião Salgado, que é um homem de bem, além de excepcional fotógrafo, porque o Brasil não está cumprindo as obrigações internacionais que a gente soberanamente aceitou com a população indígena. Nós somos soberanos, mas não somos soberanos para matar, nem para desrespeitar os indígenas, as mulheres, os negros. Não somos soberanos para queimar a Amazônia. E não somos soberanos para disseminar o vírus.

(Arte: Gabriela Stähler / Beta Redação)

Há um semelhança entre o governo norte-americano e o brasileiro em culpar a China pela pandemia, dizendo que é o “vírus chinês”. O que se pode esperar como consequência desse atrito com o país asiático?

A China é um país em ascensão. Eu pessoalmente participei do estabelecimento da parceria estratégica Brasil-China, no governo Itamar Franco, há 26 anos. Antes já tínhamos um importantíssimo acordo na área de satélites. Durante muitos anos era o maior projeto de cooperação científica e tecnológica entre países em desenvolvimento. Então toda essa relação muito especial com a China está sofrendo. Naquela época, o comércio bilateral era de 2 bilhões de dólares, mais ou menos 1 bilhão para cada lado. Hoje é 100 bilhões. Esse crescimento corresponde a um crescimento da China no mundo.

A economia chinesa já passou a economia americana em termos de poder de compra, que é um cálculo que é feito pelo FMI e o Banco Mundial. E vai também passar, em não muito tempo, em termos de valores de mercado. Então a China vai se tornar a maior potência econômica do mundo. Em muitos aspectos já é. Não é só a oficina do mundo, como se poderia pensar, em manufatura, mas também em alta tecnologia, como o caso da tecnologia 5G da Huawei.

Isso tende a criar conflitos de qualquer maneira, é natural. O grande desafio dos estadistas, da China e dos Estados Unidos, e para os outros que estão em volta que de alguma maneira têm influência, como o Brasil, é fazer com que esses conflitos não se agravem de uma maneira que torne possível uma guerra. É muito perigoso. A fala de que o vírus é chinês, que é repetida como se fôssemos papagaios que não têm nem imaginação para falar as coisas, é muito perigosa para o Brasil.

No momento em que se for pensar em construir o mundo após essa depressão, que vai ser muito forte, o principal fornecedor de investimentos não vai ser os Estados Unidos. O principal fornecedor vai ser a China. Nós temos que ter capacidade de negociar bons termos. Não é sair da dependência dos Estados Unidos e passar para uma dependência da China. Nós temos que ter uma boa capacidade de negociar e para isso temos que ter uma relação amistosa.

Tanto Trump quanto Bolsonaro e seus filhos são adeptos de discursos polêmicos. Quais são as diferenças entre esses discursos?

Não vou dizer que ele (Bolsonaro) é “louco”, mas quem usou essa expressão de alguma maneira foi o Financial Times, em artigo. É uma avaliação de uma pessoa da área financeira, que visitou o Brasil. Uma banqueira fala para o escritor do artigo que a diferença entre os dois é o grau de inteligência.

O discurso de Trump segue uma forma e nós não. Nós vamos no interesse americano e não no brasileiro. Qual é a razão de defender a cloroquina? Se fosse um produto brasileiro, como no caso do etanol, mas não tem nada a ver. Nem sei se existe um interesse econômico por trás disso. No caso do Trump parece ter.

Existe sim um seguimento totalmente subalterno, é pior que automático. Às vezes presumem qual vai ser a reação e se adiantam. Até no caso da Venezuela. Retirar seus próprios diplomatas do país é um coisa inacreditável, é um prejuízo para os brasileiros que vivem lá. Uma das missões fundamentais é proteger os brasileiros no exterior. Agora, se você for brasileiro e morar na Venezuela e quiser registrar um filho ou ser repatriado, você não tem a quem se dirigir. É uma loucura, isso não se faz. Essas coisas só acontecem quando é o prelúdio de uma guerra que você está envolvido. É uma coisa contrária ao nosso interesse.

(Arte: Gabriela Stähler / Beta Redação)

Com relação ao coronavírus, mesmo quando Trump mudou um pouco de posição, nós conseguimos insistir. O Bolsonaro entrou em confronto com os governadores, qual a razão disso? Não dá para entender. Essa submissão tem prejuízos grandes, prejudica o Mercosul. O objetivo dos Estados Unidos sempre foi dividir o Mercosul. Eles propuseram um acordo de livre comércio para o Uruguai separadamente, tivemos que nos empenhar para que isso não acontecesse. Eles sempre quiseram dividir e agora estamos fazendo isso de graça, por eles, com o Ministro da Economia dizendo que o Mercosul não é importante. É muito triste. O Mercosul é uma das maiores criações diplomáticas que houve. Não é só sobre comércio, é sobre a paz na região, a democracia na região.

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