As histórias da loteria esportiva

Campeonato gaúcho forneceu a primeira zebra, que virou mascote do Esportivo — Sucesso do concurso qualificou o plantão das jornadas esportivas no rádio — Escândalo de manipulação de resultados, denunciado por revista, deu início à derrocada da modalidade de apostas

Liege Barcelos
Redação Beta
8 min readApr 9, 2018

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Já pensou em ganhar uma graninha palpitando sobre os jogos dos principais campeonatos e ligas do mundo? Hoje, não faltam sites que ofereçam essa oportunidade. Mas, há 48 anos, que primeiro uniu a emoção do futebol com a adrenalina das apostas esportivas no Brasil foi a Loteca. Nela, você marca o seu palpite para cada um dos 14 jogos do concurso, assinalando uma das três colunas, duas delas (duplo) ou três (triplo).

A Loteca é a sucessora da extinta Loteria Esportiva Federal, e foi criada em fevereiro de 2002. É a atual modalidade de prognóstico esportivo das loterias da Caixa.

Sucesso na década de 70 e início dos anos 80, a Loteria Esportiva teve o último concurso em 4 de setembro de 1989. Retornou ao mercado em 1994, mas acabou extinta em 2002. De acordo com dados da Caixa Econômica Federal, nos dois períodos foram apurados 1.390 concursos.

Início na ditadura

Em 1969, o então presidente da República Marechal Artur da Costa e Silva, segundo da era ditatorial brasileira, instituiu a Loteria Esportiva Federal. Gaúcho e grande apreciador de jogos em geral, Costa e Silva proferiu, logo após assinar o decreto: “Agora o povo terá uma grande chance de ficar rico”. Mesmo instituída, a prática necessitava de regulamentação e preparo da Caixa Econômica Federal, o que só foi possível no ano seguinte.

No dia 19 de abril de 1970, a Caixa fez o primeiro concurso teste, para apostas apenas no então estado da Guanabara, atual Rio de Janeiro, onde ficava a capital do país na época. Segundo, Gilberto Maluf colunista do blog História do Futebol, o concurso teve uma tiragem de 100 mil bilhetes e um prêmio de 253.958 cruzeiros novos, equivalentes a atuais R$ 394.388,43.

Ilustração do primeiro volante de apostas da Loteria Esportiva (Foto: Reprodução do Blog Histórias do Futebol)

Entre as 13 partidas selecionadas para o concurso teste, o destaque foi o clássico Fla-Flu pela Taça Guanabara, o primeiro do técnico Yustrich, vencido pelo Flamengo com gol de Adãozinho. O time da Gávea vencia aquele que seria o campeão brasileiro daquele ano.

O Rio Grande Sul também esteve representado. Aliás, essa foi uma partida decisiva para a primeira rodada da loteria esportiva.

A disputa entre Esportivo e Grêmio foi válida pela fase preliminar do Campeonato Gaúcho de 1970. Com equipe reserva, uma vez que o elenco principal excursionava em amistosos pelo país, o na época time da Azenha perdeu por 1 a 0 no estádio Montanha dos Vinhedos. O gol do Esportivo foi marcado por Décio. Essa vitória do clube de Bento Gonçalves configurou a primeira zebra da história da Loteria Esportiva Federal.

O ex-presidente do Esportivo Sérgio Pozza relembra que foi a partir da repercussão dessa vitória que o time passou a adotar a zebra como mascote da equipe.

“Esse episódio foi sem dúvida um dos grandes feitos da história do Esportivo. Por onde íamos as pessoas nos diziam que o nosso time havia impedido elas de ficarem milionárias”, recorda.

A vitória do Esportivo foi determinante para que nenhuma aposta chegasse aos 13 acertos nesse primeiro concurso, e por isso o prêmio foi dividido entre as oito apostas que obtiveram 12 pontos.

O pernambucano Guilhermino Ferreira, 42 anos, é contador e consultor especialista em loterias de números nacionais e internacionais. Ganhador de 70 prêmios em diversas loterias, atribui a derrota do Grêmio nesse jogo como responsável para que não se tivesse uma aposta com o número máximo de acertos na rodada experimental. “Mesmo com time reserva, era bem difícil que o Grêmio perdesse a partida. Foi a zebra do jogo nove”, explica.

Resultado do concurso um das partidas que envolviam o concurso da Loteria Esportiva — 19/04/1970 (Imagem: BlogWikidot)

de acordo com dados apresentados pelo Blog Wikidot, que contém todos os placares dos jogos da Loteria Esportiva Federal desde 1970, foi somente a partir do teste de número seis, que os concursos passaram a ser regulares, acontecendo semanalmente. Consolidava-se aí uma febre nacional e, como previu o presidente Costa e Silva, a possibilidade de o povo brasileiro “enriquecer”.

1978 foi o ano do Mundial da Argentina. Uma crise política afetava o vizinho sul-americano. Autoridades esportivas, políticas e sociais questionavam se seria possível realizar a Copa do Mundo em terras “hermanas”. A paixão pelo futebol foi capaz de selar um acordo de paz: o movimento Peronista Montoneros propôs ao presidente argentino Rafael Videla uma trégua durante a Copa do Mundo. Situação e oposição queriam que a seleção do seu país se sagrasse campeã do torneio intercontinental. E assim a Copa aconteceu.

Foi também em um dia qualquer de 1978 que Elson Selson Muller, 58 anos, preencheu seu primeiro volante da loteria esportiva em uma casa lotérica da Rua General Netto, no centro de Novo Hamburgo. “Eu tinha 18 anos e só pensava em tirar um dinheiro”, relembra. Com valores de prêmios altos para época, os concursos atraíam milhares de apostadores com as mesmas pretensões de Elson.

O objetivo exclusivo do pacto entre os grupos políticos da Argentina se confirmou: nossos coirmãos levantaram sua primeira taça como campeões mundiais em 25 de junho de 1978, data de aniversário de 19 anos de Elson. No entanto, ele não foi coroado com a mesma sorte da seleção do Rio do Prata: nunca pontuou o suficiente para ganhar algum prêmio da esportiva.

“Olha eu aí: Deu zeeeebraaaaaa”

Os apostadores acompanhavam a rodada no rádio e depois reviam os resultados no Fantástico. “Além de acompanhar os jogos pelo rádio, ainda fazia questão de conferir tudo à noite, no programa”, relata Elson.

O jornalista Léo Batista anunciava os resultados da rodada acompanhado de uma zebra, que virou mascote do quadro. Ela indicava os quadrantes de acordo com o resultado de cada partida. Quando algum placar improvável acontecia, ela se manifestava com a frase “Olha eu aí: deu zeeebraaa!”, que acabou virando um jargão na boca do povo.

O Fantástico adotou uma zebra como mascote para divulgação dos resultados da Loteria Esportiva (Arquivo Globo/Fantástico)

A rotina esportiva das rádios mudou bastante com a popularização dos concursos. Em determinado momento, os jogos de campeonatos estaduais, que não eram selecionados para composição das partidas, ficavam em segundo plano. O jornalista Darci Ribeiro Filho, repórter esportivo da rádio Gaúcha naquela época, conta que “era mais importante dar os resultados dos jogos da Loto daquele dia do que qualquer outro placar”.

Plantonista esportivo no auge da loteria esportiva, o jornalista Rogério Bohlke conta que a disseminação do jogo foi decisiva para a criação de uma nova função em uma jornada esportiva.

“As jornadas tinham um narrador, um comentarista e um repórter. O plantonista, na maioria das vezes, era alguém nem sempre ligado ao esporte, que fazia jornalismo geral e que estava pela rádio. Neste caso, ele se limitava a dar alguns outros poucos resultados, às vezes, somente após o término das partidas. Com o surgimento da loteria esportiva, essa função passou a ser importantíssima, pois havia a necessidade de trazer os resultados e a variação dos escores conforme os gols fossem acontecendo. Isso exigia conhecimento. Não podia mais ser um curioso”, ressalta.

Rogério lembra que, no Rio Grande do Sul, um profissional em especial se destacou nesse tipo de acompanhamento: Antônio Augusto dos Santos, falecido em 2015, tido por ele como o maior plantonista esportivo do rádio brasileiro. “Ele fazia programas de prognósticos, elaborava percentuais para cada uma das colunas e, com isso, podia prever o número de acertadores, com relativa precisão. Assim como ele, havia outros profissionais em outros estados que faziam trabalho semelhante”, recorda.

A loteria alcançou uma representatividade tão expressiva que a revista Placar dedicava duas páginas de cada edição ao retrospecto dos últimos cinco confrontos das partidas que poderiam compor a rodada. Um resumo ajudava o leitor a escolher o melhor resultado de acordo com o histórico dos times.

A Placar oferecia material de consulta para o apostador se basear ao escolher os resultados que seriam marcados no volante de apostas. (Reprodução Revista Placar edição 299 de 18/12/1975 (Foto: Liege Barcelos/Beta Redação)

1982: cartão vermelho para a Loteria Esportiva Federal

Não há como falar de 1982 sem lembrar da “Tragédia do Sarriá”. Nesse jogo, a Seleção Brasileira teve como algoz Paolo Rossi, o atacante que marcou os três gols da vitória italiana de 3 a 2 sobre aquele que foi (e ainda é, segundo alguns) apontado como um dos mais talentosos time da história das Copas do Mundo. Junior, Sócrates, Falcão, Zico e companhia, sob o comando de Telê Santana, sucumbiram à genialidade de Rossi. O sonho do tetra tinha sido adiado mais uma vez.

Alguns meses após a precoce eliminação nas quartas de finais da Copa da Espanha, deu zebra na loteria esportiva: uma bomba caiu sobre as cabeças dos apostadores e apaixonados por futebol. A edição 648, de outubro de 1982, da Placar trouxe à tona o escândalo de manipulação de resultados que influenciavam diretamente a distribuição dos prêmios. A “Máfia da Loteria Esportiva”, denunciada pela publicação, era um esquema que envolvia cerca de 125 pessoas, entre atletas, dirigentes, árbitros e funcionários da Sports Press, empresa que selecionava as partidas que fariam parte dos concursos da loteria.

Capa da edição 648 da revista Placar (Foto: Reprodução)

A revista contou, em 12 páginas de conteúdo chocante, detalhes de como funcionava o plano de “fabricar zebras”, que era financiado e favorecia empresários e grupos influentes em praticamente todo país. A revista provou que havia muito mais que sorte e conhecimento de futebol para marcar para os 13 pontos em um cartão de loteria, frustrando assim o sonho do Elson e de tantos brasileiros de ficarem ricos ganhando na esportiva.

O jornalista Darci Ribeiro relembra que a divulgação e confirmação do esquema e dos nomes dos participantes caiu feito uma bomba na comunidade esportiva.

“Foi nesse momento que o futebol brasileiro começou a perder toda a sua credibilidade”, sentencia Darci.

A Placar era a principal revista de conteúdo esportivo do país na época. Após esse episódio, a loteria esportiva perdeu prestígio, deixando de ser comercializada em 1989.

Saiba mais

· Substituta da Loteria Esportiva Federal, a loteca passou a vigorar em 18/02/2002. Desde então, já foram apurados 793 concursos;

· A aposta mínima é de R$ 2,00 e dá direito a um duplo. Quanto mais duplos e triplos marcar, maior é o preço da aposta e maiores são as suas chances de ganhar. O encerramento das apostas é às 14h de sábado.

· Foram mais de 1,3 milhões de ganhadores, incluindo todas as faixas de premiação;

· Distribuiu-se em torno de R$ 351 milhões em prêmios;

· Em torno de R$ 400 milhões foram repassados à União em 16 anos. A Loteca arrecadou, em 2017, R$ 84.776.941,00;

· SP é o estado que mais comercializa o produto, com 29,16%, seguido de MG, com 13,21%, e RJ, com 10,06%. O Rio Grande do Sul tem a participação de 4,41%.

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Liege Barcelos
Redação Beta

Repórter da Beta Redação, geminiana e bipolar, devota de Nsa Sra Aparecida, Colorada fanática e mãe de cachorro