A arte salva, mas pede socorro

Com o setor cultural parado devido à pandemia da Covid-19, artistas e espaços culturais buscam auxílio da Lei Aldir Blanc em Garibaldi

Kellen Dalbosco
Redação Beta
6 min readJun 2, 2021

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Guilherme Carniell atua como professor de teatro no Espaço Coletivo das Artes. (Foto: Fabiano Vuelma)

Às vésperas de completar um ano da aprovação no Senado, a Lei Aldir Blanc — em homenagem ao letrista morto em maio de 2020 vítima de Covid-19 — dispensou para estados e municípios um socorro de R$ 3 bilhões para o setor cultural. O dinheiro, destinado à garantia de renda mensal, manutenção de espaços artísticos e promoção de editais, veio em um ótimo momento para este que foi um dos setores mais atingidos pela paralisação das atividades, mas tem se mostrado insuficiente para a continuidade dos trabalhos.

Dos R$ 3 bilhões repassados para os estados do Brasil, o Rio Grande do Sul recebeu cerca de R$ 150 milhões, R$ 70 milhões para programas e editais estaduais e R$ 80 milhões para 395 municípios interessados em utilizar o recurso. Nos municípios, critérios populacionais, entre outros, foram utilizados para determinar o valor destinado a cada local.

Cerca de 15 meses após a chegada do vírus no Brasil, o setor cultural permanece com as atividades suspensas. A expectativa de retomada não foi viabilizada devido à incerteza de vacinação e o aumento dos casos. A opção por eventos online, como a realização de lives, é uma realidade, mas com a arrecadação de fundos comprometida, manter os espaços culturais abertos tem sido uma batalha para proprietários e artistas.

É o caso do Espaço Coletivo das Artes — Ecoa, em Garibaldi, Serra Gaúcha. Em 2019, ano de abertura, cerca de 5 mil pessoas frequentaram os 80 eventos realizados durante o ano. Segundo a proprietária e diretora do espaço, Manuela Guerra, a renda diminuiu em 70%, juntamente com a circulação de alunos e professores. Dos 100 estudantes das modalidades artísticas disponibilizadas, restaram 30 e os nove professores agora se resumem a ela e a um colega. Localizado na centenária Buarque de Macedo, onde, conta a história, era o caminho que trazia o progresso para as cidades da região da uva e do vinho, o Ecoa não encontra aporte financeiro para as contas de aluguel, internet, telefone, água, luz, pagamento de professores, materiais das aulas e manutenção do local.

Espaço Coletivo das Artes durante evento realizado antes da Pandemia do Covid-19. (Foto: Hugo Araújo)

Com tradição na região pela vida boêmia e pelos bares lotados, assim como pela Festa Nacional do Espumante, Garibaldi desenvolveu-se culturalmente e já recebeu artistas nacionais que realizaram shows para clubes lotados. Logo, a vida artística local sempre foi vívida ao longo dos anos, frequentemente apresentando novos talentos na música, dança, teatro e literatura. Com a Covid-19, o cenário estagnou, mas a Lei Aldir Blanc foi um suspiro para os artistas da cidade. A Prefeitura de Garibaldi recebeu R$ 251.124,50 do governo federal e realizou três editais de chamamento público para artistas locais diretamente atingidos pela paralisação do setor.

No primeiro chamamento, realizado ainda em 2020, foram contemplados 21 projetos com valores de até R$ 9 mil, que variaram conforme as especificidades de cada projeto. Nos musicais, o valor máximo foi de R$ 8,5 mil; já as produções audiovisuais puderam atingir o teto máximo de gastos. No segundo, foram mais 11 projetos contemplados em categorias similares. Entre música, fotografia, teatro, dança e cinema, os 32 projetos atingiram, aproximadamente, segundo a Secretaria Municipal de Turismo e Cultura, 50 pessoas entre músicos, atores, fotógrafos, publicitários e equipes de som e luz.

(Imagem: Kellen Dalbosco/Beta Redação)

A arte salva, sempre salvou

Mesmo tendo passado todo o período de pandemia classificado como não essencial, o setor cultural continua mostrando o seu papel de formador da sociedade. Guilherme Carniell, publicitário, ator e professor de teatro do Ecoa, estreou como produtor audiovisual através do documentário média-metragem intitulado ARTE SALVA — SEMPRE SALVOU, realizado a partir da participação no edital de chamamento público com recursos da Lei Aldir Blanc. O filme apresenta entrevistas com artistas de Garibaldi, alguns com trajetórias mais longas e outros iniciando no setor. Desafiados a contar sobre sua relação com a cidade, expectativas, sonhos, decepções e metas da carreira, eles relatam, principalmente, as vivências artísticas.

Documentário ARTE SALVA — SEMPRE SALVOU, de Guilherme Carniell, produzido com incentivo da Lei Aldir Blanc

“Enquanto gravava e editava o material, senti uma sensação de realização. Escutar colegas da classe artística me inspirou a continuar na minha atividade e não desistir”, comenta Guilherme. Apesar de viver com uma situação financeira confortável, principalmente por não depender somente da renda gerada com as aulas de teatro, que ganharam formato on-line ou com turmas presenciais reduzidas, ele comenta sobre a sensação de não dar a volta por cima. “O que frustra, mesmo, é a sensação de trabalhar, criar, reinventar e não ter o retorno financeiro no final do mês. Eu sei das minhas condições e sei que tem gente em situação mais delicada, e eu também sei a importância da arte em nossas vidas.”

Salvar a arte e acolher os artistas também significa auxiliar financeiramente os espaços artísticos, afinal, é neles que a cultura acontece. O Espaço Coletivo das Artes foi contemplado com três projetos pela Lei Aldir Blanc — dois pela cidade de Garibaldi e um pelo Estado do Rio Grande do Sul. Houve a 2ª edição do Sarau de Música Autoral do Ecoa, uma live que reuniu e deu visibilidade ao trabalho de 10 artistas locais convidados. O espaço também recebeu a nível municipal um subsídio para espaços culturais. Já pelo governo estadual, o socorro ocorreu através do projeto de aquisição de bens e materiais, com a compra de equipamentos de luz, som e vídeo para a adequação dos trabalhos de gravação.

Além de produzir o seu próprio documentário, Guilherme Carniell ainda participou de mais três projetos realizados com o incentivo da lei em Garibaldi. (Foto: Arquivo/Tem Gente Teatrando)

Para Manuela Guerra, diretora do espaço, os editais da prefeitura de Garibaldi, através do subsídio da Lei Aldir Blanc, proporcionaram uma produção artística muito expressiva na cidade, evidenciando, principalmente, a necessidade de políticas públicas abrangentes, já que a classe artística mostrou sua qualidade com as produções. “O setor precisou se reinventar e cumpre muito bem o seu papel. Cabe ao poder público incentivar e promover políticas públicas para salvar e garantir a sobrevivência de muitos profissionais da área impedidos parcial ou integralmente de trabalhar”, complementa.

Entretanto, mesmo os valores mais altos disponibilizados para os projetos não são suficientes para a manutenção dos trabalhos dos artistas locais. Inclusive os projetos mais simples exigiram custos de produção, o que acabava deixando para os artistas um cachê singelo e insuficiente para o período de paralisação. Nesse quesito, Manuela e Guilherme unem as vozes na crítica à forma como os recursos foram conduzidos. “Não podemos visualizar a Aldir Blanc como um auxílio emergencial, é um edital com início, meio e fim. Para muito artista foi o único cachê de 2020”, comenta Guilherme.

Para ele, um dos fatores que auxiliaram na realização dos projetos foi o cooperativismo dos artistas locais, já que a maioria se viu na mesma situação e decidiu abraçar a cena e contratar somente artistas, produtores e realizadores da cidade, o que ocasionou uma explosão de arte em Garibaldi. “Como reflexo disso, atualmente o Conselho de Políticas Públicas Culturais de Garibaldi (ConCult) luta para que a Secretaria de Turismo e Cultura abra, anualmente, um edital nesses moldes para impulsionar a economia criativa local. Por fim, o ideal seria que tivesse uma nova Aldir Blanc. Os artistas precisam todo mês pagar contas. Um edital assim, uma vez por ano, não fará muita diferença”, finaliza.

Dos R$ 251.124,50 recebidos pela prefeitura de Garibaldi, R$ 14 mil ainda não foram utilizados, mas, por orientação do governo federal, não serão devolvidos por enquanto. Segundo a secretária de Turismo e Cultura da cidade, Melina Casagrande, o poder público sempre buscou auxiliar grupos culturais dentro das leis vigentes, citando a Lei nº 13.019, de 2014, que trata das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil. “Além do mais, a Secretaria de Turismo e Cultura, neste ano, como nos anteriores, realiza o edital de chamamento aos grupos culturais do município e termo de fomento para manutenção da Orquestra Municipal de Garibaldi”, esclarece.

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