Dos palcos às plataformas digitais

Tchê Guri, Terceira Dimensão, Papas da Língua, Delicatessen, Doidivanas e Marcozero relatam alternativas em época de distanciamento social

Helen Appelt
Redação Beta
9 min readJul 1, 2020

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Helen Appelt e Murilo Dannenberg

A chegada da pandemia afetou diversas áreas econômicas, tanto do país quanto do mundo. Todos os profissionais sentiram a necessidade de se reinventar para manter a renda, inclusive os profissionais da música, que depende de público para manter a receita. A equipe da Beta Redação foi em busca de bandas regionais para ouvi-los sobre o assunto.

Há 30 anos no mercado, a Banda Tchê Guri estava com shows vendidos durante todas as sextas-feiras e sábados do ano, além de uma média de 15 shows por mês na programação. “Nossa agenda estava lotada, em abril tínhamos 20 shows vendidos, setembro também devido à Semana Farroupilha. Com a pandemia, tivemos que cancelar todos”, conta o vocalista Lê Vargas. Além disso, em fevereiro a banda gravou um projeto em DVD, em comemoração aos 30 anos de carreira, que estaria sendo vendido nas estradas gaúchas, a caminho dos shows agendados.

(Foto: Reprodução Facebook Tchê Guri)

Para Lê, as lives são apenas uma forma de manter a banda em evidência. “É uma forma de mantermos o trabalho, principalmente porque desde o ano passado estamos investindo nas redes sociais e plataformas de streaming. O Tchê Guri cresceu muito no quesito digital, então as lives servem de apoio a esse trabalho que iniciamos”, conta. Além de trabalhar a imagem, o grupo está buscando participar de editais por meio da Lei de Incentivo à Cultura (LIC).

Nessa fase de pandemia, com os planos adiados, os integrantes da banda continuam vivendo da música, porém, transmitindo seus conhecimentos e talentos por meio das aulas online. “Sem dúvidas é um ano marcante para o Tchê Guri, pois completamos 30 anos de carreira e estamos há quase 100 dias sem exercer nosso trabalho. Acredito que toda dor traz um aprendizado e estamos buscando nos reinventar”, comenta Lê. Os integrantes estão aproveitando o momento para curtir a família, estudar e organizar coisas que foram adiadas no decorrer do tempo.

Embora a nova rotina dos músicos ainda esteja sendo organizada, o empresário da banda, Odilon Dalla Porta, acredita que esse seja o pior cenário para a classe musical, pois o futuro é muito incerto em relação ao que estamos vivendo. “Paramos dia 15 de março e vamos ser os últimos a voltar ao trabalho, sem data e hora. Quando voltarmos não vai ser como era antes, acredito que haverá aquele medo de você ir a um show e ser contagiado pelo vírus. Além disso, tem a questão econômica, pois vai ter muita gente desempregada”, desabafa.

Para o empresário, a pandemia é um agravante no mercado devido à falta de incentivo à cultura. “Hoje a classe artística está praticamente abandonada pelos nossos governantes. Você não vê em notícia nenhuma algum político falando alguma coisa da área musical. Infelizmente, no Brasil a cultura não é prioridade como é em outros países”, opina.

Terceira Dimensão

(Imagem: Reprodução Facebook Terceira Dimensão)

Outra banda ouvida pela Beta Redação é uma velha conhecida das noites de bailão. O grupo Terceira Dimensão, com 46 anos de carreira em apresentações onde a música nativista e os bailes ainda são populares, passa por um momento difícil. Conversamos com o empresário da banda, Odacir Machado, que contou um pouco sobre como os músicos e a equipe técnica estão sobrevivendo durante a pandemia.

Questionado sobre a necessidade de os integrantes do grupo se ocuparem com trabalhos paralelos ou secundários, Machado confirma: “Uns foram trabalhar como frentistas em posto de combustíveis, outros foram trabalhar com obras, jardinagem, pintura de casas… nessas bases estamos nos defendendo”.

Além disso, outra ocupação a que alguns músicos recorreram foi o transporte de passageiros. Ainda que a situação indique uma necessidade de isolamento, a uberização do trabalho chegou, literalmente, até os integrantes da Terceira Dimensão, que tiveram que recorrer aos aplicativos de carona para conseguir uma renda extra.

Ainda assim, no próximo dia 27 o grupo realizará uma transmissão beneficente em um perfil nas redes sociais e também no YouTube, para angariar alimentos para doação. Um dos motivos do grupo e da equipe terem sido muito impactados pela Covid-19 foi o fato de seus integrantes viverem da música, e pela alta frequência de shows que a banda cumpria no calendário. Segundo Odacir, a média era de 18 bailes por mês. Após quase 100 dias sem shows, a situação financeira ficou difícil.

Machado acredita que músicos que precisam estar na estrada frequentemente para sobreviver deveriam receber alguma atenção especial do governo. “Acho que o governo tem que criar uma linha de crédito baixo e carência. Isso nos ajudaria muito até normalizar nossos trabalhos”, salienta.

Apesar do pedido, é pouco provável que tal linha de crédito se torne realidade. Em um cenário que as contas públicas já estão fragilizadas e até mesmo o auxílio emergencial de R$ 600, conseguido apenas por alguns dos músicos, parece estar com os dias contados, a ausência de um Ministério da Cultura (que, aliás, foi transformado em Secretaria) forte deixa a classe desprotegida no Brasil.

Marcozero

(Imagem: Reprodução Facebook Marcozero)

A Beta Redação conversou também com músicos do cenário do rock gaúcho independente, como o vocalista Marco Prates, da banda Marcozero. Não diferente dos demais, o grupo está paralisado desde o início da pandemia e tem mantido o contato através de reuniões virtuais.

Com dois álbuns de estúdio e outros lançamentos, como discos acústicos e EPs, o conjunto porto-alegrense formado em 2007 permanece ativo na pandemia. Conforme Marco, ele e os demais integrantes sempre mantiveram atividades profissionais paralelas. Assim, a pausa nos shows, desde 18 de janeiro, não está afetando tanto a realidade financeira do grupo.

“A banda ainda tem um material muito rico para lançar, que já havíamos gravado antes. Vamos lançar em julho, engajando os públicos através do Instagram e do Spotify”, onde, segundo Marco, a Marcozero tem material até o ano que vem. “A banda sempre tem um planejamento de médio e longo prazo. Claro que não pensando na pandemia, mas temos bastante material e canções inéditas para lançar”, enfatiza.

Conforme o perfil do grupo no Spotify, a média de ouvintes mensais é de 24 mil pessoas. Para se ter uma ideia, a cada 1.000 streams, ou seja, a cada 1.000 vezes que uma música é ouvida, a plataforma mais conhecida de streaming musical paga cerca de U$ 4.

Ele ainda conta que, em épocas de calendário normalizado de shows, a Marcozero fazia cerca de 10 eventos mensais, especialmente na Grande Porto Alegre, além do grupo excursionar em outras regiões durante os lançamentos de trabalhos autorais.

A banda não tem planos de realizar lives, mas sim de finalizar os materiais que já tinham e compor novas canções. O que para grandes artistas aparece como uma forma de capitalizar no período de reclusão, para bandas regionais não é uma alternativa que interessa ou que traga resultados, em muitos casos.

Delicatessen

(Imagem: Reprodução Facebook Delicatessen)

Gaúcha mas não gauchesca, a Delicatessen é conhecida por proporcionar uma mistura de jazz americano e o gênero brasileiro da bossa nova. A Beta Redação entrevistou o contrabaixista da banda, Nico Bueno, conta como têm sido esses três meses de agendas canceladas e atividades extras em busca de renda. Veja a entrevista:

Nico Bueno concede entrevista via Skype para Beta Redação. (Imagem: Beta Redação/Helen Appelt)

A Delicatessen lançou o novo álbum no último dia 20. Para Nico, mesmo o momento sendo delicado, a internet tem sido uma grande aliada. Segundo ele, com a live de lançamento, a musicista Kaori Kikuchi, fã da banda, conseguiu acompanhar o evento online do Japão e deixou um recado (originalmente em inglês): “Parabéns pelo seu novo álbum. Que mundo maravilhoso, estou ouvindo as novas músicas do outro lado da terra. Álbum bonito, não é?”.

Doidivanas

(Imagem: Luigi Sodré)

Do jazz à brasileira partimos para o rock bagual do Doidivanas. O grupo, que mistura influências que vão de Red Hot Chilli Peppers até Vitor Ramil e Almôndegas, já tem uma carreira de mais de duas décadas, com cinco álbuns lançados e que, ao contrário do que vemos nos outros cenários, está a todo vapor.

Segundo Rodrigo dMart, baterista e principal compositor do grupo, tanto ele quanto a banda estão bastante ativos durante a pandemia. “A situação atual tem sido um estímulo para produzir coisas novas”, comenta. Além de músico, Rodrigo também é jornalista, autor de livros e HQs e atua como funcionário público.

Ele acredita que as relações de produção e gravação musical serão afetadas permanentemente pela situação atual. “Vai ser tudo feito a distância. Hoje posso gravar o meu instrumento e depois juntamos com as outras tracks e conseguimos produzir música sem ter que nos reunir em estúdios”, revela. Rodrigo acredita que será o comum daqui pra frente também para outros grupos.

Apesar de os integrantes já terem um passado mais dependente da música para sobreviver, especialmente no final dos anos 90 e no começo dos anos 2000, hoje todos os músicos possuem profissões extras. Por isso, a pandemia não foi baque financeiro para o grupo. Ainda assim, Rodrigo vê a quarentena como uma janela de oportunidade para a concretização de um projeto: o lançamento de uma gravadora e selo de distribuição próprios.

A iniciativa permitirá a ele e a banda, se os músicos usarem a gravadora e o selo, ter um maior controle sobre a venda de direitos e distribuição das músicas. Outro projeto do artista, para capitalizar através da internet, é a criação de uma loja virtual própria, onde estarão disponíveis os materiais produzidos pela empresa Imagina Conteúdo Criativo, que administra junto com a esposa, Yara Baungarten.

Papas da Língua

Quarentena do Papas inspira reflexões enquanto o grupo busca novos formatos para voltar aos palcos (Imagem: Raul Krebs)

A Beta Redação conversou ainda com o guitarrista, compositor e fundador do Papas da Língua, Léo Henkin, para entender como uma das bandas mais conhecidas do Estado está reagindo em um momento sem agenda. “Cada um em sua casa, no isolamento social, o máximo possível”, destaca Léo. Financeiramente, no entanto, a pandemia não foi um grande baque no calendário de eventos da banda. Desde a saída do vocalista Serginho Moah, Henkin salienta que o Papas reduziu bastante a quantidade de shows e estava testando novos vocalistas e verificando novos formatos.

Desde os anos 90, o Papas da Língua foi uma banda que conseguiu consolidar uma base grande de fãs e se transformar em um grupo relevante no cenário regional e depois nacional. “O Papas é uma banda que tem mais de 25 anos de estrada. A média de shows sempre foi de 8 a 10 por mês, às vezes mais, às vezes menos.” A agenda cheia, os contratos com a gravadora Epic e os sucessos de vendas garantiram à banda uma carreira consolidada e que permitiu aos membros um situação financeira privilegiada em relação a muitas outras bandas.

Assim, os músicos do Papas conseguem suportar a pausa no calendário de shows sem ter que recorrer a outras atividades. “Por enquanto seguimos só fazendo música, suportando do jeito que dá, esperando pela retomada”, conta Henkin. Com mais de 150 mil discos vendidos, a carreira da banda possibilita uma estabilidade para períodos de hiato. Permite, inclusive, que os integrantes não sejam obrigados a aceitar participar de lives em outros estados, conta Henkin.

Ainda que no meio de uma fase de transição, a banda vinha produzindo material inédito. “Estávamos trabalhando em novos singles, já no estúdio, em pré-produção, quando a pandemia chegou”, conta o guitarrista. Os lançamentos, porém, ficaram sem previsão. Após um período de assimilação da situação social e econômica, Henkin conta que entrou em um platô criativo, o que está mudando somente agora. “Neste momento, tendo uma distância maior do início, parece que já existe um ânimo maior para compor, até uma necessidade para expressar o que estamos vivendo”, revela.

Henkin considera que a pandemia aproximou a música do grupo da base de fãs. Atualmente são mais de 410 mil streams mensais apenas no Spotify. Isso já garantiria uma receita mensal próxima de R$ 7 mil aos detentores de direitos de reprodução das músicas da banda. Apesar de singela, para uma banda conhecida nacionalmente e com mais de 27 anos de estrada, representa apenas uma das fatias que possibilitam ao grupo se manter resguardado atualmente.

O músico também destaca que as interações com os fãs aumentaram. “Principalmente pessoas nas redes cantando nossas músicas. Pessoas que nos mandam essas mensagens de todos os cantos, muito bacana. É a saudade batendo, nós do nosso público, e eles de nós”, conclui.

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