A “dança das cadeiras” entre técnicos do futebol brasileiro

Treinadores brasileiros raramente completam um ano no comando dos clubes, sendo que Lisca foi destaque por transferência em 24 horas

Arthur Mombach Schneider
Redação Beta
6 min readOct 25, 2022

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Técnico Lisca em partida pelo Avaí. (Foto: Frederico Tadeu/Avaí F.C.)

Luiz Carlos Cirne Lima de Lorenzi, mais conhecido como Lisca, é o atual técnico do Avaí Futebol Clube, de Santa Catarina. Natural de Porto Alegre, ele é bisneto de Carlos de Lorenzi, ex-goleiro do Sport Club Internacional em 1919, e neto de Jorge de Lorenzi, que também foi goleiro do Inter na década de 1940. Diferente de seus familiares, Lisca preferiu estar no campo de outra forma: não como jogador, mas como treinador de futebol.

Sua carreira iniciou nas categorias de base do Sport Club Internacional em 1990. Depois, passou pela base do São Paulo Futebol Clube e retornou ao Inter antes de ter a primeira experiência em um clube profissional. Como treinador, Lisca chama a atenção por acumular passagens por vários clubes, mas não permanecer muitos jogos no comando das equipes. Seus principais trabalhos foram no Clube Náutico Capibaribe, em 2014 e 2015, no Ceará Sporting Club, em 2015 e 2018, e no América Futebol Clube, em 2020.

Lisca sempre se sobressaiu pelo estilo sanguíneo e “louco”, o que originou o apelido “Lisca Doido”. Muitos acreditam que falta a ele a oportunidade de liderar um time de maior expressão para que consiga ganhar mais visibilidade.

Em setembro, o treinador gaúcho virou destaque nos noticiários por ter migrado de um clube a outro em menos de 24 horas. Lisca, que estava no Santos Futebol Clube, passou a treinar o Avaí Futebol Clube.

Ele foi afetado por dois dos maiores problemas que afligem os técnicos brasileiros: a demissão em massa e a curta duração como treinador de um mesmo clube. No Brasil é incomum os técnicos permanecerem por um longo período no mesmo clube. Em média, eles não chegam a completar um ano no comando de um mesmo time.

Para o colunista da Gaúcha Zero Hora e comentarista da Rádio Gaúcha Leonardo Oliveira, os técnicos são as vítimas, mas também os vilões dessa situação, pois se beneficiam com as mudanças excessivas no mando dos times. Isso significa afirmar que eles estão sempre empregados, visto que normalmente há vagas disponíveis no mercado futebolístico. Por outro lado, tornam-se vítimas pelo fato de que os técnicos sofrem com a escassez de tempo para desenvolver um trabalho duradouro e consistente.

De acordo com Oliveira, a estrutura do futebol no país cria um cenário em que se joga demais e se treina de menos. “Acho que o futebol brasileiro é a única modalidade de elite em que se pratica a competição e não se treina para ela”, ressalta. Consequentemente, não é possível analisar o trabalho realizado pelo técnico, pois suas principais tarefas são a gestão de grupo e a parte tática, que não estão necessariamente relacionadas apenas com os resultados das partidas.

“Não se tem pré-temporada. Começa a temporada com jogos quartas e domingos nos estaduais, e, depois, vem as copas. Assim, tu joga e não treina”, aponta Leonardo. Segundo ele, o trabalho do técnico é de segunda a sexta-feira e se estabelece na maneira que ele treina o time, nos métodos utilizados e na abordagem com os jogadores.

Um estudo realizado em março de 2022 pelo CIES Football Observatory (Centro de Estudo Internacional do Esporte) indica que o Brasil está entre os piores colocados no ranking de trocas de técnico. Além disso, as Séries A e B do Brasileirão estão no Top-10 das ligas com as menores médias de permanência de treinadores.

Na análise, foram abordados 1.866 times, de 126 ligas de 89 países, entre primeiras e segundas divisões. No Brasileirão, 77% dos técnicos estão há menos de seis meses no cargo e nenhum está há mais de dois anos no comando de um mesmo clube. O mais longevo é Maurício Barbieri, treinador do Bragantino, que exerce a função desde setembro de 2020.

Para o presidente do Sindicato dos Treinadores do Rio Grande do Sul, Adão Alípio Soares dos Reis, o problema da inconsistência dos técnicos no futebol brasileiro não tem como ser resolvido porque as leis não são seguidas. Exemplo disso é a Lei Caio Junior (Projeto de Lei N° 7560/2014), que preconiza que em caso da demissão de um treinador, outro profissional só poderá ter seu contrato registrado na entidade de administração do esporte caso tenha sido paga a cláusula de rompimento ou efetuado o acordo.

“Existe um acordo com os treinadores, que faz com que eles não sejam demitidos, e sim apenas afastados. Dessa forma, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) permite que eles possam ser contratados por outro clube. Então os sindicatos não têm o que fazer, porque cada dirigente determina. Se perdeu é demitido o treinador”, destaca Adão.

O principal motivo dessa “dança das cadeiras” acaba sendo o calendário de jogos do futebol brasileiro, que não permite tempo de descanso aos atletas ou treinadores.

Contudo, esse cenário pode mudar nos próximos tempos, pois o futebol está projetando um calendário mais justo. A partir da chegada das Sociedades Anônimas do Futebol (SAF), os clubes terão outros objetivos além dos resultados, como a parte financeira. Com isso, os técnicos terão mais tempo para realizar seus trabalhos. “As novas SAFs estão trazendo um trabalho de longo prazo, pois elas não são resultadistas. O resultado que ela busca é financeiro”, afirma Leonardo.

Segundo o jornalista do Grupo RBS Eduardo Gabardo, as SAFs estão vindo para ficar. Para ele, isso é, em tese, positivo, mas será necessário analisar primeiramente como os clubes que as adotarem se sairão nos campeonatos. Caso tenham bons resultados, as SAFs devem se tornar uma tendência ainda maior no país. Atualmente, no futebol brasileiro, existem as SAFs do Cruzeiro, Botafogo e Vasco.

Gabardo acredita que a SAF mais estruturada será a do Bahia com o Grupo City, que ainda não foi oficializada, mas que deve ser futuramente. “Se prevê um crescimento em ganhos financeiros que é extremamente importante para o clube com esse projeto de 1 bilhão de reais. Então, se realmente for aprovada pelos sócios, essa SAF do Bahia vai colocar o clube no mesmo patamar financeiro de Inter e Grêmio para 2023”, destaca.

Outra questão importante é que os clubes começaram a buscar melhores condições nos acordos de televisão, principalmente com a idealização da Liga do Futebol Brasileiro (Libra), que hoje está em processo de criação pelos grandes clubes. Dessa forma, os campeonatos estaduais acabariam perdendo seu valor e haveria mais tempo para a pré-temporada nos clubes.

Com um campeonato com valores que pagariam uma temporada inteira dos clubes, os estaduais deixariam de ser necessários para os grandes times, pois, hoje, o único motivo para eles disputarem essa competição é o retorno financeiro.

Lisca Doido

Ao recordar a carreira de Lisca, Leonardo menciona que ele é um dos técnicos mais promissores da atualidade. Contudo, reflete que ele não consegue ter um sucesso maior por escolhas na profissão. Exemplo disso é a mudança repentina de clube. Ele saiu do Santos depois de dois meses de trabalho para treinar o Avaí, de Santa Catarina. Antes, havia deixado o Sport Recife após três semanas no cargo para treinar o clube paulista.

“O Lisca é um técnico que tem um potencial imenso, é um cara acima da média de conhecimento tático. Só que ele precisa amadurecer como técnico, amadurecer na gestão de pessoas, no relacionamento com as pessoas. Acho que o Lisca tem esse passo para dar. Conheço ele desde que ele era técnico da base. Ele é um dos maiores conhecedores de futebol que nós temos por aí”, enfatiza Leonardo.

Lisca instruindo atletas do América MG em uma partida. (Foto: Mourão Panda/América)

O técnico Lisca é um dos grandes personagens do futebol brasileiro. Junto com a mudança estrutural prevista para o futebol brasileiro, sendo ela a formalização das SAFs ou a criação de uma liga com um calendário mais justo, técnicos como ele, que acabam não permanecendo por longos períodos em um clube, podem vir a ter mais tempo para mostrar seu potencial.

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