Figura feminina presente no ateliê de Eloisa Tregnago (Foto: Juliana Coin/Beta Redação)

A delicadeza da mulher que esculpe

Por trás de um olhar iluminado e um sorriso levemente tímido, a escultora abraça sua sensibilidade e a despeja em suas obras

Juliana Coin
Redação Beta
Published in
9 min readNov 6, 2019

--

Atrás do portal verde e marrom enferrujado, um ateliê na Vila Nova, em Porto Alegre, é decorado com as mais profundas lembranças de uma escultora. Estar nesse espaço é adentrar na calmaria e no saudosismo de Eloisa Tregnago.

Aos 61 anos, com a voz calma e pausada, a escultora reservada é coautora de uma das obras mais conhecidas da cultura porto-alegrense: o Monumento à Literatura Brasileira, localizado na Praça da Alfândega, no centro da cidade, produzido com Xico Stockinger, seu mestre e parceiro de ateliê.

Formada em Letras pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), Eloisa é natural de Bento Gonçalves. Apesar da formação, não tinha interesse pela vida de professora ou tradutora. Gostava mesmo era de desenhar. Após algumas aulas na Serra Gaúcha, sentiu necessidade de continuar sua caminhada e, então, alinhou seu trajeto para Porto Alegre.

Ao chegar na capital, descobriu que no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), Vasco Prado e Xico Stockinger ministravam um curso de modelagem em argila. Foi lá que conheceu e conquistou a amizade de ambos os escultores, presentes em todas as suas lembranças.

Cama ornamentada com obras de Eloisa. (Foto: Juliana Coin/Beta Redação)

Encontro Eloisa no final de uma trilha de concreto que desce até a porta do ateliê. Ela me cumprimenta e me encaminha para um quarto, onde uma cama é decorada com pequenas figuras femininas e masculinas produzidas com retalhos de cobre de outras peças moldadas por ela. O lugar é aconchegante e intimista.

Ela aponta para um sofá onde um grande cachorro amarelo dorme profundamente. Abraçando e acariciando o cão de guarda, Eloisa me apresenta o Alemão. Com 11 anos, Ale, como é carinhosamente chamado, se espreguiça, mas não faz muito esforço para se confrontar com a visita desconhecida — que é o que se espera de um cão de guarda. Aos poucos, indo de um cômodo a outro, a escultora começa a contar a sua história.

As figuras

Assim que terminou o curso de modelagem, Vasco Prado e Xico Stockinger convidaram Eloisa para atuar como estagiária. “Comecei nos dois ateliês e trabalhava todos os dias. Dois ou três dias no Vasco e os outros dias aqui no ateliê do Xico”. Ao lado de Prado, ela se dedicava a modelar, posar e dar formas às pedras. Enquanto isso, Xico ia mais longe: “Já de saída me botou a trabalhar com a marreta e com a talhadeira na mão para quebrar pedra”, relembra.

Eloisa conta que, mesmo que os escultores não lecionassem técnicas de desenho, ela aproveitou para aplicar seus conhecimentos de modelagem através de dimensões de proporção, pose e linhas. “O desenho me ajudou e tive mais facilidade do que algumas pessoas que já faziam modelagem”, comenta.

Ela me explica detalhes dessa lembrança e de suas habilidades artísticas enquanto me leva até a sua oficina, onde várias cabeças de mármore estão em fase de produção, postas em cima de toras de madeira e encostadas no chão. A oficina é repleta de grandes peças de mármore e equipamentos de entalho sobre as mesas.

O seu processo de modelagem iniciou com terracota, ou seja, com argila cozida no forno. “Foi um ótimo estudo para, depois, eu poder entender como era uma figura e fazer em mármore”, relembra. Eloisa ressalta que produz principalmente figuras, e que o abstrato é uma técnica que, por enquanto, não tem vontade de investir.

Algumas peças produzidas em terracota. (Foto: Juliana Coin/Beta Redação)

Existe algo notável em suas figuras. A maioria das peças produzidas pela escultora são femininas, o que ela acredita acontecer por identificação. “Eu não vou escolhendo, mas vai saindo e quase sempre sai uma figura feminina. A pedra irregular já sugere alguma coisa, então vou seguindo aquilo que mais ou menos enxergo na pedra”, ressalta.

Além de esculpir em mármore, Eloisa também faz fundição. A técnica se dá através de um molde de cera, — que depois de moldado é “embalado” em uma estrutura de gesso, deixando apenas dois canos de fora, onde é depositado o ferro fundido. Depois que derrete metais como bronze e cobre, ela despeja nos devidos canais para que o molde de cera derreta. Espera secar, retira o gesso, e dá vida à peça.

Quem a ensinou a fundir os metais também foi Xico. O ateliê tem uma fundição capaz de fabricar peças de até 50 centímetros. Para gerar peças maiores é necessário encaminhá-las para fundições profissionais.

“Tem que passar pela cera, que é aquilo que vai derreter e deixar um vazio que vai ser preenchido pelo bronze. Tem pessoas que modelam em qualquer outro material, como barro ou gesso, e fazem uma forma, passam para a cera e depois colocam o bronze. O Xico me ensinou a modelar direto na cera”, destaca Eloisa, enquanto observa seus materiais em produção.

Para ela, o trabalho de esculpir em bronze é algo a ser feito em conjunto. “Tanto o mármore quanto o bronze são perigosos e, por isso, a fundição é uma técnica que eu não posso fazer sozinha. Preciso de pelo menos uma outra pessoa para segurar na outra ponta da pinça e derramar. E isso não dá para ser feito por um amigo qualquer, pois tem que ter conhecimento”, explica.

O mestre

O local onde estamos agora é uma pequena sala aberta, sem uma parede e sem janelas, do lado oposto à oficina que antes estávamos. Entre uma e outra história, questiono o que a escultora sente ao revisitar as memórias. “Nem vamos começar a falar disso, porque me emociono. Sinto falta do Xico todos os dias”. Uma frase dita com a voz embargada, os olhos com lágrimas e a sensação de estar imersa em saudade e felicidade.

Dois mil e dezenove marca os cem anos de nascimento e os dez anos de morte de Xico. Eloisa foi uma das pessoas procuradas para oferecer a sua visão das esculturas, conversar sobre a vivência com ele e emprestar as obras do ateliê para serem expostas. “Então eu fiquei envolvida com essas festividades, eu vi o filme, conheci fotos da época. Aqui tudo me lembra ele”.

Rememorando sua trajetória, Eloisa me entrega folhetins de divulgação das suas exposições, com opiniões de Prado e Stockinger sobre sua capacidade artística. Prado tece elogios ao argumentar que “me encanta a tenacidade e seriedade no trabalho de Eloisa Tregnago. Desenha, mexe com a pedra e o bronze sem pressa e com a humildade de quem sabe o que está fazendo”. Stockinger já desabrocha em um grande texto: “É cativante ver a Eloisa enfrentar de martelo em punho a pedra bruta e acompanhar sua transformação em escultura. É jovem, mas conhece na prática o ofício”.

Desenho inédito de Xico Stockinger. (Foto: Juliana Coin/Beta Redação)

Eloisa mantinha uma rotina diária com Xico. “Ele vinha às vezes de manhã e, ao meio dia, eu levava para casa. Às vezes almoçava lá, às vezes não”. Na semana anterior à sua morte, o escultor visitou seu apartamento no centro de Porto Alegre. Ele foi dirigindo. Conversaram sobre muitas coisas e ele perguntou o quanto ela gostava dele. “Eu até brinquei com ele, ‘segunda-feira a gente se vê’. Fui passar o fim de semana na serra e, domingo de noite, a filha dele me ligou dizendo ‘o pai morreu’. E foi assim”. Logo após esse depoimento, uma longa pausa, apenas com o som do vento transpassando as folhas das árvores que contornam a casa. “Ele morreu como queria, com todas as potencialidades físicas e mentais de um homem de 89 anos”.

O ateliê não é só um ateliê

Quando Xico era vivo, Eloisa buscava um terreno para que pudesse ter seu próprio lugar de trabalho. O artista ofereceu um espaço na Vila Nova, aquele mesmo em que ela iniciou seus estágios e desenvolveu suas primeiras peças. Ela aceitou. Depois, comprou a parte que pertencia à esposa de Stockinger.

Porém, depois que o artista morreu, o encanto pelo ateliê se acinzentou. “Nos primeiros dias eu quis passar a chave e tchau. Mas não dava pra mim”, acrescenta.

O ateliê é algo que abraça quem está ali. Todo o tempo em que fiquei ao lado de Eloisa, senti algo entre a ternura e a nostalgia. Ao mesmo tempo em que o silêncio é quase absoluto, as obras presentes em todos os lugares causam uma agitação interior, como se muitas pessoas estivessem ali conosco, vigiando cada passo que dávamos entre entrar em uma porta e sair em outra.

É um personagem. É parte de uma família. É um companheiro de vida. É mais que um museu, mas talvez ainda não seja um lar. Mas, com certeza, não é só um ateliê.

A escultora

“Quem é Eloisa? Não me faz essa pergunta, eu não sei responder”, suspira. Ela espia Alemão, que está deitado no quintal. Hoje, a escultora conta que, para ela, tem mais valor resgatar ou salvar um animal do que uma pedra que ela esteja fazendo. “Eu estou mudando com a idade, com a velhice. Se antes me bastava, agora eu estou cada vez mais sentindo falta do contato humano e animal”, resume.

Eloisa Tregnago e Alemão, posando ao sol. (Foto: Juliana Coin/Beta Redação)

Paula Ramos é jornalista e dá aula no Instituto de Artes da UFRGS. Ela é amiga de Eloisa desde 1999, quando, através de uma visita ao ateliê para entrevistar Stockinger, conheceu a escultora e se apaixonou por sua obra. “Se tu olhares bem para aquelas figuras tu vai ver que tem uns traços de mulher forte. Não são traços delicados, mas expressões marcantes que lembram as mulheres italianas da região serrana”, relata.

Entretanto, a falta de visibilidade da escultora incomoda Paula. Ela estudou com três grandes nomes: Bez Batti, Vasco Prado e Xico Stockinger. Entretanto, sempre fica à sombra de grandes artistas. “Mesmo com o reconhecimento da excelência do trabalho, ela nunca teve a efetiva visibilidade, o que notamos pela ausência de Eloisa nas exposições”, comenta Paula.

No final da entrevista, Eloisa fala que não quer que eu saia dali com a sensação de que o lugar havia morrido, ou algo do gênero. Pelo contrário, minha impressão foi justamente que este é o momento perfeito para que a escultora mostre o que sempre esteve ali. Ela está viva e parte da alma dela está no ateliê. Ela é a grande mestre agora.

Entretanto, Eloisa Tregnago não se limita à arte. “A vida de um cachorro, de uma pessoa vale muito mais do que a pedra que eu esteja fazendo, porque eu sempre convivi bem com coisas, mas atualmente vejo que são só coisas, arte. Pode botar quanto quiser em cima, de sentimento, de vivência, pode fazer poemas, pode botar tudo o que quiser. Tem, tem tudo isso sim, eu tive, eu vivi, eu respirei isso por anos, mas em última análise são coisas”.

Galeria de fotos

--

--

Juliana Coin
Redação Beta

Tentando inserir um pouco de realidade num universo de fake news.