A história da capoeira em Canoas

Esporte que privilegia a música e os movimentos corporais contribui para a valorização da cultura afro-brasileira

Andressa Morais
Redação Beta
7 min readNov 8, 2022

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Oficina de capoeira no Hangar Cultural, realizada em 2018 e ministrada pelo Mestre Dindo, no bairro Guajuviras. (Foto: Prefeitura de Canoas/Vinicius Thormann)

A capoeira é considerada umas das mais relevantes manifestações culturais brasileiras e é reconhecida mundialmente como uma prática que une o esporte e a arte. Apesar relevância, seu exercício foi considerado crime durante anos. Em Canoas, no Rio Grande do Sul, figuras importantes contribuíram para sua valorização, como o Mestre Alfredo, o José silva, conhecido como Mestre Dindo e o Contra Mestre Carlos Silva, chamado de Alemão, cujas trajetórias se misturam à história da própria capoeira na cidade.

Esporte caracterizado por elementos ginástico-acrobáticos e pelos movimentos dos pés e das mãos, a capoeira surgiu como resposta para a violência a qual os escravizados eram submetidos nos tempos coloniais e imperiais do Brasil. A partir de golpes e ações corporais ágeis, a luta permitia que eles se defendessem das perseguições dos capitães do mato. Para não levantar suspeitas, os capoeiristas adaptaram os movimentos e adicionaram elementos coreográficos e musicais. A prática deixou de ser considerada criminosa pelo Código Penal brasileiro apenas em 1937, segundo a Câmara Legislativa.

A capoeira se diferencia de outras lutas pela música. Além dos movimentos corporais, os capoeiristas precisam saber tocar instrumentos característicos da cultura afro-brasileira, como o atabaque e o agogô. Ou, ainda, o berimbau, conhecido mundialmente e considerado o mais famoso.

O esporte se desenvolveu principalmente na Bahia e se difundiu por vários estados. A Roda de Capoeira, também segundo dados da Câmara Legislativa, foi reconhecida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Cultural Brasileiro em julho de 2008. Em 2014, a prática foi reconhecida como Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Essas conquistas recentes refletem décadas de combate contra o preconceito em relação à prática. O reconhecimento também contribui para a valorização e para o não apagamento da cultura afro-brasileira.

O começo da trajetória da capoeira em Canoas

Na década de 1970, influenciado por filmes de kung fu, Alfredo e outros amigos começaram a praticar as técnicas da luta oriental de forma inusitada, chutando árvores e folhas. Em 1977, eles buscaram em Porto Alegre academias que oferecessem aulas de kung fu, mas a prática não agradou. No mesmo período, Marcelo Junqueira apresentou Alfredo ao nordestino Aluísio Coutinho, o Mestre Macaô, que ensinou a ele a técnica da meia lua de compasso.

No ano seguinte, em 1978, Marcelo reservou um espaço no porão de casa para que pudessem treinar a capoeira. Contudo, o local ficou pequeno após a chegada de novos interessados pelo esporte. Foi quando o grupo conseguiu um local maior no Canoas Tênis Clube. Alfredo destaca que, nesse período, a prática “explodiu” na cidade. À época, grandes nomes passaram pelo grupo, como Carlos Silva, apelidado de Alemão, e Cristiane Paré, conhecida como Tininha, a primeira mulher a praticar e ensinar capoeira em Canoas.

Entrevista de Tininha para o projeto Capoeira Canoas, realizado pelo capoeirista Leandro Miranda, professor no grupo Capoeira Angola Brasil. (Vídeo: Leandro Miranda/Capoeira Canoas)

Carlos Silva, o Alemão, que entrou no capoeira enquanto o grupo estava no Canoas Tênis Clube, tinha forte influência da contracultura com um viés de contestação. Antes de começar na dança, praticou judô e tinha interesse pelo surf e skate. Foi a partir dos esportes radicais que conheceu o Mestre Macaô, que na época era conhecido como Baiano. Alemão e Macaô foram para a praia de Capão da Canoa surfar com amigos. Antes de entrar no mar, como prática de alongamento, Macaô fez os movimentos da capoeira. Foi então que Carlos se interessou e quis aprender mais sobre o esporte.

A mudança oficial entre um esporte e outro aconteceu quando Alemão foi desclassificado em uma competição de judô, justamente por se valer de técnicas da capoeira. A partir desse momento, ele integrou definitivamente o grupo com o Alfredo, Aluísio e os demais integrantes.

Nessa época, Alemão e Macaô também faziam demonstrações de capoeira no calçadão de Canoas com o objetivo de despertar o interesse dos moradores. Referente ao repertório musical e à técnica dos instrumentos, Carlos conheceu o berimbau na loja do pai, a Flora Iemanjá.

O Contra Mestre Alemão ao lado do Mestre Nô nos anos 1980, na Ilha de Itaparica, Bahia. (Foto: Arquivo Pessoal/Carlos Silva)

Alfredo conta que o grupo de capoeira passou por muitos lugares, mas lembra que o Clube Cultural Canoense foi o local onde mais pessoas entraram para aprender a técnica. Segundo ele, as primeiras aulas tinham, em média, 150 pessoas. Pelo fato de Macaô viajar com frequência para Sergipe e Bahia, os demais integrantes deram sequência aos ensinamentos da dança.

Em 1982, o grupo conquistou um espaço no Colégio Estadual Marechal Rondon, onde a capoeira se consolidou e continua sendo ensinada até os dias atuais. Um ano depois, o Mestre Macaô trouxe da Bahia o Mestre Nô para se unir ao grupo. “Com a chegada do Nô, nossos horizontes se ampliaram. Nós tivemos acesso à capoeira da Bahia, a capoeira raiz”, explica Alfredo.

No evento do Grupo Palmares do Sul, em 1987, o Mestre Nô joga capoeira com outra participante. (Vídeo: Leandro Miranda/Capoeira Canoas)

“A segunda metade da década de 1980 foi um período extremamente fértil, em que nós tivemos contato com a velha guarda, gente tudo acima de 60 anos, como João Pequeno, Ferreirinha, Bobó e o Curió”, relembra Alfredo.

O capoeirista fala sobre a importância que a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) teve na trajetória do esporte. Ele conta que, nos anos 1980, o professor Lino era o diretor do curso de Educação Física, e a disciplina de capoeira virou optativa no currículo. Alfredo também lembra que o grupo fazia rodas de capoeira na frente da universidade. “A Unisinos teve uma participação muito importante, nos concedeu espaço e o Lino, em especial, era quem viabilizava e nos proporcionava a utilização dos espaços”, finaliza.

Espaço cultural Angola Brasil e Grupo de Capoeira Palmares

Diretor do Capoeira Canoas e professor do esporte, Leandro Miranda iniciou a prática nos anos 1990 com influência dos primos. Ele aprendeu as técnicas com o Mestre Heitor. Em 1997, Leandro recebeu o título de instrutor de capoeira e, no ano seguinte, começou a ensinar na Associação dos Moradores do bairro Mato Grande, onde morava. Já em 1999, ele se tornou professor e começou a ensinar nas escolas municipais.

Hoje, Leandro tem a capoeira como atividade principal. Ele é gestor do grupo Capoeira Angola Brasil, que antes era integrado com o grupo Palmares do Sul, administrado pelo Mestre Dindo. Porém, em 1997, aconteceu uma divisão e foram criados dois grupos. “As relações continuaram as mesmas, mas a gente acabou tendo uma nova identidade e uma nova linguagem de atuação”, explica.

Segundo José Viana, conhecido como Mestre Dindo, o grupo de capoeira Palmares Sul conta com 120 alunos. O trabalho é desenvolvido nas periferias de Canoas com pessoas em situação de vulnerabilidade social.

Dindo começou na capoeira em 1981 e aprendeu as técnicas do esporte com o Mestre Macaô. (Foto: Arquivo Pessoal/José Viana)

O professor Leandro conta que o grupo Angola Brasil tem núcleos de turmas em escolas, mas não sabe quantos alunos participam do projeto atualmente. Segundo ele, antes da pandemia, havia cerca de 1 mil participantes. O capoeirista também é pesquisador e conhece a história da capoeira de Canoas. Ele conta que a metodologia de ensino da Angola Brasil contempla o aprendizado dos fatos que se desenrolaram para que o esporte começasse e se consolidasse, tanto na cidade quanto no país.

De acordo com Leandro, o Espaço Cultural Angola Brasil, onde se encontra a escola de capoeira, se sustenta através da mensalidade dos alunos. O capoeirista também conta que o local ajuda no desenvolvimento dos alunos em relação às técnicas do esporte, já que, nas escolas, o espaço é limitado.

Além dos valores das mensalidades, eles oferecem bolsas para aqueles que querem aprender, mas não têm condições de pagar o valor integral, principalmente estudantes de escolas públicas. O aluno pode praticar até três vezes na semana. O investimento mensal para quem pratica uma vez na semana é de 50 reais, duas vezes é 100 reais e três é 120 reais.

Semana da Capoeira em Canoas

No dia 7 de novembro de 2022 começou a 8º Semana Municipal da Capoeira em Canoas, fruto da luta e trajetória dos mestres e capoeiristas que trouxeram a prática para a cidade. Leandro, que coordena a ação, conta que em 2009 foi assinada uma lei que coloca a Semana da Capoeira como atividade do calendário oficial do município. A programação conta com oficinas, aulas, palestras e espetáculos. Após cinco anos, a atividade voltou a contar com a parceria da Prefeitura de Canoas, através da Secretaria da Cultura. No ano passado, eles fizeram a edição online, sem apoio.

A Semana da Capoeira visa oportunizar para a cidade um encontro cultural temático, com o objetivo de mostrar as ações que a capoeira proporciona ao município. Além disso, divulga e valoriza o trabalho dos mestres. “A semana da Capoeira é, principalmente, para nós capoeiristas mostrarmos a resistência que a gente tem todo o ano”, complementa. É possível conferir a programação completa no site da Prefeitura de Canoas.

Entre os desafios da prática da capoeira, Leandro, que está à frente do colegiado setorial da capoeira de Canoas, destaca que o reconhecimento é um desafio. “Eu ainda consigo trabalhar com a capoeira, mas nós temos muitos mestres que precisam se dedicar a outras atividades profissionais para sustentar suas famílias”, explica. Para ele, é preciso valorizar a prática do esporte e dos mestres, principalmente o trabalho desenvolvido nas periferias.

Apesar de não praticar mais a capoeira por conta de lesões, o Contra Mestre Alemão acompanha o trabalho de outros capoeiristas e destaca o que o esporte significa. “Eu identifico a capoeira como uma coisa viva. Lá no início a capoeira foi um esporte, uma luta legal que eu achei para praticar. Mas, ao longo do tempo, a capoeira foi despertando a minha consciência social, política e histórica. Ela contribuiu para que eu, branco de classe média, compreendesse a história dos negros escravizados”. Alemão também destaca que aprendeu o significado da capoeira, da luta e do contexto cultural que carrega.

Para saber mais sobre a história da capoeira em Canoas, confira a série de vídeos publicados pelo Alemão no YouTube ou pelo Leandro Miranda, no canal Capoeira Canoas.

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