A insatisfação irreal com a própria imagem

Transtorno Dismórfico Corporal causa comportamento compulsivo com a autopercepção

Mariana Necchi
Redação Beta
8 min readMay 3, 2022

--

Por Gabriel M. Ferri e Mariana Necchi

Apesar de pouco conhecido, o TCD é reconhecido pela comunidade científica desde o século XIX. (Foto: Alexander Krivitskiy/Unsplash)

“Quando Gregor Samsa, certa manhã despertou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um inseto monstruoso”. Franz Kafka, em sua aclamada obra “A Metamorfose”, faz de seu personagem principal um alter-ego para se referir à própria aparência. “Miserável” e “desprezível” são adjetivos usados com frequência. Ele também deixa claro em passagens narrativas a angustiante aversão à sua imagem refletida em espelhos.

O romance de Kafka produz diversas interpretações — sejam elas acadêmicas ou populares — , mas o ponto em comum é a perspectiva da interpretação da própria imagem de maneira compulsiva. Em 1915, ano do lançamento do livro, esse comportamento era chamado de dismorfofobia e se caracterizava, principalmente, pelo medo patológico de ser ou se tornar deformado. O transtorno foi descrito pela primeira vez na história da medicina pelo psiquiatra italiano Enrico Morselli em 1886.

Quase um século depois, em 1980, o chamado Transtorno Dismórfico Corporal (TDC) foi reconhecido pela American Psychiatric Association como um distúrbio mental. Atualmente, segundo artigo publicado na National Library of Medicine, é estimado que afete 2,4% da população mundial e cerca de 4,1 milhões de pessoas somente no Brasil. Apesar de registrar maior incidência entre o gênero feminino, a doença também acomete os homens. A faixa etária entre 15 e 30 anos apresenta maior probabilidade para desenvolver o transtorno.

Embora a comunidade científica ainda não tenha uma resposta concreta que explique as causas do TDC, há dados indicativos que o distúrbio pode resultar de uma combinação de fatores como ambiente familiar, anomalias neurológicas, abuso sexual, bullying, depressão, ansiedade e transtornos alimentares. A idealização de um corpo perfeito, reforçada nas redes sociais por influenciadores digitais e pela indústria da beleza, também é apontada no artigo como um dos indícios mais proeminentes.

Segundo especialista, transtorno também afeta a capacidade cognitiva

“Tenho pacientes com o IMC [Índice de Massa Corporal, um parâmetro médico utilizado para avaliar se o peso está dentro do valor saudável para a altura] que chegam a bater 16, ou até menos; e isso é bastante abaixo do peso ideal. Mesmo assim, elas querem fazer bariátrica ou outros procedimentos para emagrecer”, conta Andreza Lopes, neuropsicóloga que atua na área da pesquisa e tratamento para pessoas com transtornos alimentares e distorção de imagem desde 2005. Graduada em Psicologia, mestre em Neurociências e Comportamento e com doutorado em andamento, ela também é coordenadora da equipe neurológica do Programa de Transtornos Alimentares (AMBULIM) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FM-USP).

Andreza Lopes trata pacientes com distorção de imagem e transtornos alimentares há 17 anos. (Imagem: Reprodução/Google Meet)

“Elas se olham no espelho e se veem extremamente obesas. A distorção de imagem é tão forte que começam a fazer restrições alimentares radicais, e isso consequentemente causa alterações fisiológicas e neurológicas muito graves”, afirma a neuropsicológa Andreza Lopes.

Os sintomas do TDC podem variar para cada caso e tendem a apresentar diferentes graus de distorção da própria imagem. “A pessoa pode se ver com o nariz torto, gorda demais, magra demais, com barriga saliente (…). Qualquer parte do corpo pode se tornar um alvo desse comportamento compulsivo. Às vezes são cismas com ‘imperfeições’ que nem sequer existem”, elucida Andreza. O diagnóstico pode ser acompanhado de outros transtornos, principalmente relacionados à relação alimentar; como anorexia nervosa e bulimia. “Com isso, vão surgindo outros fatores que pioram o quadro. Vergonha, isolamento social e, em muitos casos, até mesmo uma incapacidade funcional para realizar coisas comuns no dia a dia”, define.

Não há dados definidos sobre contexto de gênero para quem desenvolve o transtorno, mas estima-se que mulheres são mais afetadas. “Historicamente existe esse achismo que somente mulheres sofrem com a distorção de imagem, mas homens também apresentam os sintomas em uma grande escala”, expõe a neuropsicóloga. A maioria dos casos são entre pessoas adultas, mas crianças também podem ter predisposição para desenvolver problemas relacionados à autopercepção da imagem.

Segundo Andreza, o padrão de pacientes diagnosticados com o TDC no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo é formado majoritariamente por pessoas brancas e pardas, de classe média e com ensino superior. “Nossa abordagem é multidisciplinar. Assim atendemos todas as demandas que cada caso possa necessitar. Além de todo o apoio psicológico e psiquiátrico, também contamos com nutricionistas, fisioterapeutas e educadores físicos para o tratamento e recuperação”, finaliza.

A busca pela cirurgia plástica

“Normalmente eu evito cirurgia em pacientes que apresentam o transtorno, porque não acho que eu consiga resolver o problema deles”, afirma a cirurgiã plástica Eveline Costa, que atua na área há mais de 30 anos. “Eu tenho muita parcimônia em operar. Evito todos os excessos, principalmente em casos em que o paciente está fazendo exatamente o que a doença traz, que é dar uma importância muito grande para uma coisa que eu acho muito pequena”, completa a cirurgiã.

Eveline Costa tem uma visão cautelosa sobre a intervenção estética em pacientes que apresentam distorção de imagem. (Imagem: Reprodução/Microsoft Teams)

Segundo Eveline, é necessário um extremo cuidado quando se trata de pacientes que possuem o TDC, pois algumas cirurgias podem causar mais danos do que benefícios. “Por exemplo, a paciente chega com alguma coisa no rosto, mas a gente não vê o que ela está vendo. Nesse caso, a cirurgia pode causar um dano maior e me preocupo em prejudicar mais ainda esse lado emocional”, exemplifica a cirurgiã. Ela ainda lembra que as cirurgias nem sempre são 100% previsíveis e podem deixar cicatrizes.

Eveline conclui que, após a realização do procedimento, é importante que o paciente se sinta bem com seu corpo e suas decisões. Ela também comenta que cirurgias plásticas não são o carimbo de um cirurgião e que as pessoas devem procurar aquilo que as farão felizes, porém, nunca em detrimento da saúde.

A realidade de quem convive com o distúrbio

“É um inferno. É muito difícil de acreditar que o que você está vendo com os seus próprios olhos não é real. Mas o pior pra mim foi o distúrbio alimentar que esse transtorno me trouxe e eu não pareço conseguir me livrar dele”, afirma Carla*, paciente de 30 anos.

O reflexo no espelho se torna uma constante luta para quem é acometido pelo TDC. A reportagem conversou com duas pessoas diagnosticadas com o distúrbio e que estão em tratamento com psicólogos e psiquiatras.

Apesar de compartilharem o mesmo transtorno, os sintomas relatados pelas fontes se manifestam de maneiras individuais. Para Carla*, o transtorno alimentar e o isolamento social são os mais evidentes. Já para Vitória*, os traços mais notados envolvem taquicardia, receio de olhar nos espelhos ou locais que possuem reflexos, angústia, sentimento de inferioridade, timidez excessiva, depressão, ansiedade, síndrome do pânico, sentimento de rejeição e baixa autoestima.

Em fóruns on-line, pessoas diagnosticadas com TDC se sentem mais confortáveis para compartilhar experiências sobre o distúrbio. (Foto: Olenka Kotyk/Unsplash)

Além disso, o transtorno também ocasiona nuances comportamentais. “Evito sair em fotos com os amigos e me olho compulsivamente no espelho”; “Não desejo ser atentamente observada e avaliada”; “Me sinto feia, inadequada e repulsiva em determinadas situações”, são frases ditas pelas fontes.

Ambas compartilham da mesma opinião em relação aos tratamentos psicológicos. Embora atualmente estejam em terapia e saibam da importância médica para o diagnóstico e intervenção, Carla* e Vitória* alegam que faltam profissionais capacitados para entender e tratar de questões específicas relacionadas ao TDC.

Segundo os relatos obtidos pela reportagem, falar abertamente sobre o transtorno é mais um dos desafios enfrentados pelos pacientes. Vitória*, com receio de não ser compreendida, prefere manter segredo sobre o seu diagnóstico. Carla*, por outro lado, contou para amigos próximos; porém, desconfia que, devido ao seu comportamento compulsivo, outras pessoas percebam o seu distúrbio.

Nas redes sociais, há diversidade nas perspectivas

Antigamente a ideia do padrão de beleza era estampada nas mais diversas capas de revistas. Com o passar do tempo e com a menor produção de mídias impressas, as redes sociais passaram a ocupar o papel de exaltação e supervalorização de corpos perfeitos.

Através de uma tela, digital influencers trabalham para instigar a percepção de milhares de pessoas para consumir um produto ou seguirem determinados hábitos de vida para atingirem a ideia de corpo ideal. Da mesma maneira, também contribuem para o descontentamento dos seguidores que não estão inseridos no estereótipo do padrão de beleza.

“Vamos pensar na Maria que acorda cedo e tem que pegar três conduções para chegar no local de trabalho. Além de uma carga horária pesada, ela tem filhos, casa e marido para cuidar. Ela abre o Instagram e vê a Gabriela Pugliesi fazendo stories contando que foi na massagista, na academia e que vai comer um almoço feito com ingredientes caros. Isso é muito fora da realidade da Maria, ao ponto de ser algo totalmente inatingível dela chegar perto da construção social desse padrão”, exemplifica a neuropsicóloga Andreza Lopes. “O estímulo para uma vida saudável não pode ser uma blogueira fitness, mas sim algo que seja pertencente ao limite de cada pessoa ”, declara.

Outro ponto destacado é a exibição de blogueiras com dietas restritas que oferecem risco à saúde — como a da ex-BBB Maíra Cardi, que documentou seu jejum de sete dias no Instagram. “Do meu ponto de vista como profissional das ciências neurológicas, a alimentação é importante para o funcionamento dos neurônios. Se a pessoa entra em um processo de emagrecimento severo, como ocorre nesses casos de jejum, acontece uma falha na troca dos neurotransmissores. A partir daí, pode desencadear muitos problemas cognitivos”, explica Andreza.

Por outro lado, o movimento body positive — que se caracteriza por prezar a aceitação e a autoestima do corpo sem a necessidade de se enquadrar em um padrão — também ganha espaço nas redes sociais. Blogueiras como Alexandra Gurgel, Ju Romano e Dora Figueiredo produzem conteúdos focados em trazer acessibilidade para os diferentes tipos de corpos, além de incentivar o amor próprio, o empoderamento feminino e a positividade. “Eu gosto do movimento, é importante que isso atinja a sociedade. Na metodologia de tratamento para pacientes com distorção de imagem e/ou transtorno alimentar, gostamos de trabalhar com a ideia de respeitar o corpo. É uma forma de autocuidado e, também, de entender as nossas próprias limitações; sejam físicas, fisiológicas, financeiras (…)”, conclui Andreza.

*Os nomes foram alterados para manter a privacidade dos entrevistados.

--

--