“Boa parte da legislação que rege o futebol brasileiro possui intersecções com o campo da política”, afirma doutorando. (Foto: Rafaela Biazi/Unsplash)

A inseparável relação entre esporte e política

Integrantes do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos comentam casos Carol Solberg, Bolsonaro x Maranhão, Tiago Leifert e Hyuri do Atlético

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Existe um ditado brasileiro que afirma ser um erro discutir política, futebol e religião, mas essa máxima não é seguida por um grupo que integra o Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos. O trio, composto por dois mestrandos e um doutorando, planeja lançar uma série de podcasts abordando os mais variados temas em que a conexão entre política, esporte e comunicação se faz (ou se fez) presente. O projeto levou o nome de Ao Sol e À Sombra. É uma referência à obra do escritor uruguaio, Eduardo Galeano, que o grupo considera fundamental para pensar o futebol na sociedade.

O grupo é composto pelo cearense Alison Rodrigues Soares, 25 anos, formado em Jornalismo e há nove meses integrante do Programa de Pós-Graduação Em Ciências da Comunicação da Unisinos (PPGCC); pelo gaúcho Ângelo Jorge Neckel, 27 anos, também jornalista e doutorando há um ano; e pela também gaúcha Natália da Silva Carvalho, 35 anos, publicitária e mestranda há dois semestres. Natália também desempenha a função de conselheira do Internacional pelo movimento O Povo do Clube.

Em entrevista à Beta Redação, os três pós-graduandos falam sobre o projeto Ao Sol e À Sombra, sobre a influência da política no esporte e comentam casos recentes em que ambos os temas se mostram indissociáveis.

Pergunta: Sobre o projeto Ao Sol e À Sombra: o que ele é, quem além de vocês está envolvido e em que pé ele está?

Resposta:

Ângelo: Desde as nossas primeiras reuniões, o projeto já amadureceu. Ele é uma ideia do Alison quando ainda estava na graduação. Eu fui convidado por ele a participar, mas em função da nossa entrada no PPG, a ideia foi deixada de lado. Na pós-graduação, nós conhecemos a Natália e tivemos o apoio do professor Dr. Rafael Grohmann. A respeito das pautas, foi um consenso de que elas tratassem preponderantemente sobre o futebol, entendendo a relação entre ele e política, questões sociais e comunicação.

Natália: E também intercalar assuntos mais antigos com temas que estão na pauta do nosso cotidiano. Por exemplo, alguma questão polêmica do futebol. Nós podemos abordar isso por um viés comunicacional.

Alison: A partir do momento em que os materiais forem produzidos para divulgar, aí de fato nós podemos dizer que é um projeto de extensão da Unisinos. Nós fizemos um formulário para potenciais ouvintes do nosso projeto, e assim escolhemos o podcast roteirizado como o formato ideal. Nós pretendemos colocar os episódios em todas as plataformas possíveis.

Ângelo: A temática do primeiros episódio é a relação entre o poder executivo brasileiro e as transmissões de jogos da seleção brasileira. É uma pauta recente em função da transmissão do jogo do Brasil contra a seleção peruana na TV pública. Por ser um jogo fora do Brasil e não ter sido comprado pela emissora que normalmente transmite os jogos, que é a Rede Globo, no primeiro e segundo tempo da transmissão o narrador mandou um abraço para o Bolsonaro, e durante o intervalo, foram transmitidas propagandas do governo federal. Propagandas essas sem interesse público, mas favoráveis ao governo. Isso só se tornou possível em função de algumas mudanças, não só na outorga, mas sobre a razão de existir da TV pública.

Pergunta: A gente está falando sobre essa intersecção entre esporte e política. Eu fiquei pensando em coisas que envolvem esses elementos, e a primeira que me veio à mente foi o hino nacional antes das partidas. Isso pode ser uma interferência política?

Resposta:

Ângelo: A obrigatoriedade do hino antes dos jogos começarem não é só no futebol, mas em todos os esportes. É uma lei de 2015 e aprovada em 2016. Ela é de autoria da senadora Ana Amélia (PP-RS). A justificativa dela é de que a população não tem ainda um sentimento de patriotismo como acontece em outros países, e que essa legislação irá despertar o sentimento de nacionalidade, o que é uma perspectiva determinística, como se a imposição de determinada legislação tivesse uma aceitação ampla e pudesse despertar esse sentimento.

Alison: Nunca refleti sobre isso. Pode ser que tenha alguma intenção de implementar o nacionalismo na população, mas não acho que dê certo porque as pessoas não levam muito a sério.

Natália: Eu também nunca pesquisei sobre isso, mas em época de Copa do Mundo, tem aquela coisa do patriotismo. Na prática não funciona. É mais uma coisa de ritual de jogo do que algum incentivo patriota.

Pergunta: Existem outras leis, federais ou estaduais, que acabam incorporando a política dentro do esporte?

Resposta:

Ângelo: A gente pretende abordar, num episódio futuro, a legislação no esporte, com foco no futebol. Boa parte da legislação que rege o futebol brasileiro possui intersecções com o campo da política, e por vezes midiática também. É só a gente pensar que o Estatuto do Torcedor (Lei N. 10.671) foi aprovado no Congresso após deliberações políticas e que existe a Bancada da Bola, assim denominada, constituída por ex-dirigentes e ex-jogadores de futebol. Com base no Estatuto do Torcedor é vedada qualquer tipo de manifestação política nas arquibancadas durante jogos de futebol, então é bem comum em estádios de todo o país a retirada de faixas que possam ter qualquer alusão política, inclusive quando elas não têm nenhum vínculo partidário, como quando pedem para retirar as faixas de torcidas antifascistas.

Alison: O Estatuto do Torcedor fala sobre manifestações político-partidárias. Eu tenho em mente que isso é bem claro nele, então você não pode fazer campanha para o presidente Bolsonaro, mas a liberdade de expressão, quando utilizada para falar de questões sociais, não está vedada. Se ela for barrada, é a utilização enviesada da lei pelos clubes.

Natália: Essa é uma questão bem controversa. No Beira-Rio, a brigada sempre faz vistoria das faixas que vão ser colocadas em campo, então muitas vezes há coisas que não são manifestações políticas diretas, mas elas não entram porque são censuradas antes. Não se sabe qual é a regra. Não há critérios bem definidos.

Pergunta: Eu tenho a impressão de que o presidente Bolsonaro é um ótimo exemplo para se pensar na relação entre política e esporte. Teve o caso da ida dele para o Maranhão, aquela piadinha sem graça com o refrigerante e, depois, na live da semana, aparece ele usando a camiseta de um time do Maranhão. O que a gente pode observar nesse caso?

Resposta:

Alison: Sobre o Bolsonaro usar camisetas de time de todo o Brasil, ele usa para dizer que é do povo, apesar de ele cair em contradição quando gasta 1 milhão de reais por mês com o cartão corporativo. Ele tenta criar uma identificação com o povo. O presidente usou a camisa do meu time, logo, ele é igual a mim. Nem sempre isso tem o efeito desejado. Muito gente que é oposição ao governo notou isso e se diz contrária à prática. Em 2018, ele foi levantar a taça com os palmeirenses, e depois estava vestindo a camiseta do Flamengo e se dizendo flamenguista. No futebol, a gente não confia em pessoas assim. Nós torcemos para um time, os outros nós respeitamos, mas não são o time do coração. O presidente visivelmente não tem isso. Então a decisão dele pode acarretar em mais problemas.

Natália: Isso também gera uma série de discussões internas nos clubes. No Inter, o presidente Marcelo Medeiros deu uma camiseta para o presidente Bolsonaro e aí muita gente da torcida criticou por aquilo ser um símbolo do clube, não tem nada a ver com o presidente. Isso gera muito atrito interno com a própria torcida, porque o torcedor não pode protestar e se manifestar na arquibancada, mas aí vai o presidente do clube e entrega ao presidente do país uma camiseta. Como assim? Agora pode misturar futebol com política? E o torcedor não pode?

Pergunta: E quanto aos outros presidentes brasileiros? Também existiu essa aproximação com o esporte?

Resposta:

Ângelo: Há vários períodos históricos do Brasil em que se pode perceber esse tipo de relação entre o Estado, política e futebol. Isso se dá nos projetos de unificação do Estado Novo, durante o governo Getúlio Vargas, na ditadura militar, e vai até a reabertura. Isso voltou com muita força nos últimos anos com o avanço da extrema direita no país. No Estado Novo, o futebol entra como um elemento da política de unidade nacional, de enfraquecimento dos Estados Federações. Na ditadura militar, com uma série de projetos, e aí se incluem as grandes obras de estádios nos anos 60 e 70. O uso do futebol como ferramenta de propaganda política, e até interferência nas convocações da seleção brasileira, com alguns atletas sendo preferidos em nome de outros por determinação de presidentes e governadores. Também há uma espécie de alienação política por parte dos jogadores de futebol, com algumas exceções, como Afonsinho, Paulo Cézar Caju, Escurinho, Sócrates e Reinaldo.

Pergunta: Teve o caso da jogadora de vôlei, Carol Solberg, e de um “fora, Bolsonaro” na TV. Existe algo na história que me chama a atenção: quando um atleta utiliza esse espaço que o esporte proporciona para uma manifestação política, ele/a corre o risco de ser demitido ou expulso do time. Porque existe esse risco ao protestar?

Resposta:

Alison: No caso da Carol, a gente tem uma situação intrínseca ao vôlei. Tanto o de quadra quanto de praia têm como principal patrocinador o Banco do Brasil, e a gente vê nos últimos anos a comunicação do banco sendo aparelhada. Também o fato da própria gestão do banco ter o filho do vice-presidente como um dos principais agentes. A Confederação Brasileira de Vôlei, e aí é uma hipótese minha, teme a perda de patrocínio se essas manifestações contrárias forem recorrentes. Tem um exemplo publicitário disso, quando foi feita uma peça que abordava igualdade de gênero e sexual, e ela foi banida pelo próprio presidente. Creio que a CBV olhe para isso, depois para o caso da Carol, e pense que não pode acontecer de novo porque há chances de perder o apoio financeiro, e sem isso o esporte fica deficitário.

Natália: Isso acontece quando a manifestação é contrária ao governo. Vários atletas e jogadores já se manifestaram favoravelmente e não sofreram nenhum tipo de punição. É mais uma demonstração de que essas três vertentes não se separam. É muito intrincado essa questão de comunicação, política e esporte.

Pergunta: Para finalizar, em 2018, o jornalista Tiago Leifert publicou um texto um tanto controverso em que ele opina o seguinte: “evento esportivo não é lugar para manifestação política”. O que vocês pensam sobre isso?

Resposta:

Alison: É uma questão de manter o status quo. Eu fiz um trabalho falando justamente sobre esse caso, porque ele parte da questão do Colin Kaepernick, um jogador negro estadunidense de futebol americano que se ajoelhou durante o hino nacional e gerou uma treta enorme com o ex-presidente Trump. A liga não apoiou o jogador, e o Tiago parece pensar que o Trump está certo.

Ângelo: Eu vou trazer a questão do jornalismo. Pelo Tiago ser um comunicador que se expressa em diferentes meios, esse tipo de manifestação a favor de uma despolitização social do esporte vai na contramão dos valores canônicos do próprio jornalismo, pois se por um lado se defende uma neutralidade, que é inalcançável, por outro se perde um dos principais valores orientadores da prática jornalística, que é a busca pela noção de interesse público. Então, porque o jornalismo esportivo, sendo ele também jornalismo e não somente entretenimento, deveria deixar de cobrir ou atribuir importância a debates plurais e de interesse público? Acaba sendo uma visão redutora do papel jornalístico e pedagógico do jornalismo e da mídia esportiva. Adotar esse tipo de posicionamento é a negação dos valores basilares do jornalismo liberal. É um argumento, por si só, frágil e contraditório.

Natália: Quando se fala nos valores canônicos do jornalismo, nós também temos os valores do esporte que, por exemplo, pregam por igualdade. Então os jogadores e os dirigentes dos clubes têm uma visibilidade muito grande na sociedade, e eles são importantes agentes de conscientização caso saibam fazer um bom uso desse papel, dessa representação. Aconteceu essa semana, quando o jogador Hyuri do Atlético Goianiense, depois do jogo contra o Internacional, fez aquela manifestação falando do caso de estupro de Mari Ferrer, e aquilo teve uma visibilidade e uma repercussão enorme. Hoje essa conscientização está mais presente e os atletas se posicionam nas mídias para falarem de causas sociais. Isso não tem nada de errado, bem pelo contrário, a sociedade só tem a ganhar quando isso acontece.

O trio de pós-graduandos pretende lançar o primeiro podcast, cuja função será apresentar o projeto, ainda em novembro. Acompanhe o trabalho deles pelas redes sociais:

Twitter: aosolesombra
Instagram: podcastaosoleasombra

Dicas de leitura

Para incrementar a discussão, os editores da Beta Redação criaram lista com autores literários influentes e que abordaram o tema futebol de diversas perspectivas, inclusive política: Graciliano Ramos; Lima Barreto; Mauro Rosso; Monteiro Lobato; e Olavo Bilac.

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Natan Cauduro
Redação Beta

Jornalista e estudante de Relações Internacionais.