A noite em que Ney Matogrosso apresentou Ney de Souza Pereira aos fãs

Artista esteve em Novo Hamburgo para participar de bate-papo na Feira do Livro

Isaías Rheinheimer
Redação Beta
8 min readNov 25, 2022

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Era perto das oito da noite de uma sexta-feira. No rádio, o comunicador vibrava com a proximidade da Copa do Mundo no Catar e dava graças pelo fato de a primavera ter desabrochado no Rio Grande do Sul, tudo porque o dia havia sido de céu limpo, com um calorzinho, máxima de 29ºC, e a noite caía com uma brisa agradável.

Naquela semana do dia 18 de novembro, a Praça do Imigrante, no Centro de Novo Hamburgo, foi palco de mais uma edição da Feira do Livro do município e a atração principal da noite era o cantor Ney Matogrosso, que ficou nacionalmente conhecido pelos figurinos extravagantes e pelas interpretações marcantes no palco. Ney visitou a Capital do Calçado, cidade do Vale do Sinos, que fica a 40 quilômetros de Porto Alegre, para participar de um bate-papo promovido pelo evento.

O público foi chegando enquanto a prefeita Fátima Daudt (MDB), ao promover as ações do governo durante o seu discurso, estimulava a população a ocupar os espaços públicos para que o “mal” não o fizesse. A poucos metros dali, quatro pessoas em situação de rua já estavam acomodados sob a marquise da loja Deltasul. Conversavam sobre amenidades do dia e estavam indiferentes para aquilo que se passava à frente dos seus olhos.

Moisés era um deles. O único a responder duas únicas perguntas até interromper a abordagem e avisar que não estavam dispostos a conceder entrevistas. A primeira pergunta que respondeu foi seu nome. A segunda foi que não conhecia Ney Matogrosso. Foi o bastante para entender o motivo pelo qual os quatro não estavam interessados pelo que se passava do outro lado da rua.

O público demorou a reagir quando o homem da voz estridente e de performance inconfundível subiu ao palco. Ney Matogrosso estava de calça jeans azul, um sapato preto opaco e uma camiseta básica verde. Conversar, assim, sobre a vida, quase como se estivesse em casa, num papo entre amigos, é algo pouco comum na carreira do cantor. Ney levou os primeiros dez minutos da conversa com respostas monossilábicas e de pouca expressividade, o que exigiu habilidade e poder de retórica do jornalista e professor universitário Alisson Coelho, convidado para mediar o encontro. Ao ser questionado sobre como foi enfrentar o período longe dos palcos e de restrições devido à pandemia, o cantor deu uma resposta sem tempero, algo que marcou esse início de conversa:

- Foi duro… Assim como foi para todo mundo. É isso.

O público, embora respeitoso, seguiu inexpressivo. Uma ambulância do SAMU desceu rasgando a Av. Pedro Adams Filho, sentido ao hospital municipal, e isso foi o suficiente para desviar a atenção dos espectadores. Quando se imaginava que a conversa fosse terminar com 20 minutos de papo, como um jornalista que acha o furo de reportagem, Alisson fez a pergunta que faltava para virar a chave, ao questionar o artista sobre a vida fora dos palcos. Quase que como um pedido de desculpas, Ney Matogrosso descartou, em tom reticente, a fama de ser um sujeito tímido, e avisou:

- Diria que sou recatado. Gosto mais de observar a ser observado. Não tenho necessidade de me exibir. A exuberância fica no palco, não aqui. Eu sou isto aqui, não aquele outro. Este aqui.

E apontou com o dedo indicador na direção do peito.

A declaração que poderia soar como controversa deixou Ney agitado. Ele inclinou o corpo à direita, em direção ao mediador, entrelaçou as pernas e ficou apenas com meia nádega sobre a poltrona. Escorado com o braço sobre o encosto da poltrona, contraiu os dedos da mão esquerda e olhou para as unhas, o que posteriormente pôde-se perceber ser um cacoete.

Ney se agita ao dizer que o artista que sobe ao palco é diferente do Ney da vida real. (Foto: Isaías Rheinheimer/Beta Redação)

Ney estava “nu”, e, neste momento, ficou claro para todos que quem estava ali não era Ney Matogrosso. Era Ney de Souza Pereira, um latino-americano clássico, aos 81 anos de idade, com suas crenças, suas virtudes, seus medos, suas conquistas, enfim, suas histórias. Um homem de poucas aventuras, mas que nutre uma sede insaciável de liberdade.

Ney reagiu, o público reagiu. Dali para frente, a plateia pôde conhecer um pouco mais de particularidades da vida de Ney Matogrosso. De como foi marcante, negativamente, sua adolescência sendo filho de militar, da sua fuga de casa aos 17 anos, das suas pretensões no campo das artes visuais quando chegou ao Rio de Janeiro, até quando uma amiga insistiu para que fosse cantor e o indicou para integrar a banda Secos & Molhados.

- Queria ser ator, queria pintar… E meu pai dizia: filho meu não vai ser artista. E eu pensava na minha cabeça: ah, vai ser, sim!

Alguém na plateia gritou:

- O maior (artista) de todos!

O público riu, e sucedeu a reação com aplausos. Depois disso, a atmosfera na Praça do Imigrante foi outra. As respostas ficaram mais prolixas, e os fãs encontraram o ídolo. Foi Ney quem abriu a porta que dá acesso à sua intimidade como quem quisesse dizer: hei, estou aqui para falar de mim, e não daquele artista.

As duas coisas se misturam, é verdade. Sobre a carreira, o cantor jogou para longe a possibilidade de criar algo novo agora que está vivendo uma boa fase com a turnê Bloco na rua, mas afirmou ao público que seu caderninho de anotações é revisitado de tempos em tempos, seja para acrescentar algo ou para ler o que ali já foi escrito. O quesito liberdade também foi bastante abordado por Ney. Aliás, quando foi em busca dessa liberdade, Ney de Souza Pereira encontrou Ney Matogrosso.

- Esse camarada (o artista) me invadiu. A primeira vez que subi no palco, me disseram assim: tem um metro quadrado ali que é seu. Avisei que faria o que desse na cabeça. Subi naquele palco, eles não sabiam o que eu ia fazer, nem eu sabia, mas queria me libertar. Estamos falando do período da ditadura. E me libertei… e aconteceu: aquele cara (artista) encarnou em mim.

Sua performance logo começou a chamar a atenção do Brasil. A fama, lembra Ney com certa tristeza, incomodou alguns reacionários. O apresentador Chacrinha foi um que teria defendido cortar suas aparições na TV. O artista também se mostrou contrariado pelo fato de ser cobrado por não se posicionar a favor das minorias.

- Como eu não de-fen-do as minorias? Dei a minha cara a tapa, cheguei na porta e meti o pé pelo direito de me expressar com liberdade e admitir quem eu sou, e o que sou, da forma como sou.

Ainda sobre liberdade, Ney contou sobre seu amor pela natureza e explicou que essa relação o fez comprar um sítio no Rio de Janeiro, que é seu refúgio. Lá, ele anda descalço pela mata e não se importa de ter os pés cheios de furos por conta disso. Para ele, a natureza é sagrada. Afirmou conversar com uma cobra que sempre encontra quando caminha pela mata, e disse que sua relação com rios nunca foi assustada. A conexão com a natureza e os animais fica explícita para quem acessa seu perfil no Instagram, única rede social do artista.

Na interação com o público, o assunto Cazuza entrou em pauta

Cazuza talvez tenha sido o grande amor da vida de Ney Matogrosso e o assunto não ficou de fora quando o microfone foi aberto para perguntas dos fãs. Antes, contudo, o cantor falou sobre seu círculo de amizades, venerou Caetano Veloso, Gilberto Gil, Frejat, entre outros músicos da MPB, que também são seus amigos.

Àquela altura, o clima era de fim de festa e Ney aproveitou para fazer um afago aos fãs dizendo que teriam o tempo que quisessem para fazer perguntas. E isso, de fato, aconteceu. Ney respondeu a todos pacientemente e fez questão de saber quem estava o questionando e onde estava na plateia. Eduardo Matheus Palini, 21 anos, foi um deles. O morador de Campo Bom, assim como muitos outros fãs, não tinha uma pergunta muito bem delineada, mas “pediu passagem” para poder falar olhando para o ídolo o que ele representava para a música brasileira e para agradecer pela obra.

- Se tivesse que resumir esse momento em uma frase, eu diria: foi gosssssstoso, cara! Vindo de um sex symbol como Ney Matogrosso esse momento só poderia ser gostoso. É uma recompensa poder falar com ele. Não é só uma pessoa. É uma figura, um ídolo, uma imagem, uma representação muito maior, que atravessa a cultura, a arte, que atravessa a vida.

Eduardo Matheus Palini pôde fazer uma pergunta ao ídolo. (Foto: Isaías Rheinheimer/Beta Redação)

Nessa interação com o público, Ney respondeu sobre sua relação com Clodovil Hernandes, cuja curiosidade era saber se haviam tido um caso, defendeu a cultura como uma manifestação de sobrevivência, e deu dicas a uma aspirante a cantora.

- Não podemos viver sem cultura, assim como não podemos viver sem ciência. São pilares de uma sociedade organizada… é isso! Sem isso a gente não caminha, fica estacionado na ignorância.

Ney Matogrosso deixa escapar sorriso malicioso quando fala de Cazuza. (Foto: Isaías Rheinheimer/Beta Redação)

Até que o tema Cazuza chegou, na última pergunta. Ney se ajeitou na poltrona. Deixou escapar um sorriso malicioso, se fez de desentendido até que desandou a falar. O cantor explicou que muito antes de se relacionar com Cazuza, conheceu a mãe dele. Na oportunidade, Lucinha contou a Ney que sua sogra pedia a Cazuza, na época com 12 pra 13 anos, dançar e cantar como Ney Matogrosso.

- Passados alguns anos, conheci o filho dela. Estava na praia e vi aquele garoto… e aí, pronto, o resto todo mundo sabe.

Estar diante de um ídolo também mexeu com a emoção do secretário de Cultura de Novo Hamburgo, Ralfe Cardoso. Se antes do bate-papo começar, Ralfe se emocionou ao lembrar que seu pai cantava Ney Matogrosso quando era pequeno, após o encontro, pôde explicar melhor esse sentimento.

- Para qualquer pessoa que tem um ídolo, ter a oportunidade de se aproximar dele, dar um oi, abraçar e dizer o quanto admira… quando a gente tem a oportunidade de dizer para essas pessoas o tamanho do sentimento bonito que temos, a gente tem que dizer. E Novo Hamburgo disse isso ao Ney Matogrosso de uma maneira que não deixa restar dúvidas.

Secretário de Cultura Ralfe Cardoso se emocionou com a presença de Ney em Novo Hamburgo. (Foto: Isaías Rheinheimer/Beta Redação)

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